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São Francisco e o leproso

 

São Francisco e o leproso 

Ao início de seu Testamento, São Francisco nos legou a memória do seu encontro com os leprosos, experiência crucial para sua conversão. 

Diz São Francisco: 

“Foi assim que o Senhor concedeu a mim, Frei Francisco, começar a fazer penitência: como eu estivesse em pecados, parecia-me sobremaneira amargo ver leprosos. E o próprio Senhor me conduziu entre eles, e fiz misericórdia com eles. E afastando-me deles, aquilo que me parecia amargo se me converteu em doçura de alma e de corpo; e, depois, demorei só um pouco e saí do mundo”  



Retirada de : https://blueeyedennis-siempre.blogspot.com/2012/02/embracing-leper.html em 26/02/2024

Redizendo o texto: 

Francisco deixou-se conduzir por Deus ao meio dos leprosos: tratava-se de  pesado desafio, pois, como reconheceu depois, por estar em pecados, tinha apenas uma visão carnal, e por isso a aparência desses desventurados de seu tempo lhe desagradava e angustiava sobremodo;  

contudo, não resistindo ao impulso da Graça, “fez misericórdia” com eles: note-se, isto ocorreu antes ainda de superar o amargor da visão material; 

ao afastar-se, tendo vencido a prova, Francisco recebe a visão espiritual, e então alcança a conversão, a metanoia, isto é, a mudança de mentalidade: o que era amargo se fez plenamente doce, no corpo e na alma, isto é, sem embaraços, na mente e na ação física. 

Na sequência, “sai do mundo”, abandona a reduzida impressão e avaliação temporal dos sentidos e da mente carnal, e assume a amplitude da visão eterna das coisas deste mundo segundo a evolução santificadora da Graça.    

O leproso 

Empregando a forma singular “o leproso”, lembra-se tanto o coletivo dos leprosos em geral, como a individualidade e particularidade de cada leproso com o qual São Francisco conviveu, abraçou e chegará mesmo a partilhar sua tigela. 

Podemos ressaltar a figura do leproso na conversão de São Francisco como profeta, como publicano do Reino, como sacramento de Deus. 

- Enquanto profeta, o leproso manifesta de modo pungente a situação de Francisco vivendo distante de Deus, a deformidade de sua alma, a feiura do pecado, apregoando: “assim como a perturbadora aparência do meu corpo que vês é tua alma no teu interior que não vês”. São Francisco observará na Regra não Bulada que, em meio aos nossos pecados, somos “miseráveis e pobres, pútridos e asquerosos, ingratos e maus” (Cap. 23), pois “somos o que somos diante de Deus”. 

Certa vez, Santa Catarina de Sena, adentrando ao salão nobre do palácio papal em Avignon, deparou com cortesãos e cortesãs perfumados, luxuosamente vestidos e adornados com joias, no entanto recuou espavorida, uma vez que, por visão espiritual, via todos esses grão-senhores e senhoras revelados em modo repugnante    e repulsivo, fétidos e disformes, pelos adultérios e pela cobiça que na alma de cada um grassava. 

- Ainda enquanto profeta, o leproso revela ao jovem de Assis seu futuro escatológico, como a dizer: "se não te converteres, assim como sou no tempo, serás na eternidade”. 

São Francisco assumirá o anúncio dos Novíssimos (morte, juízo, inferno, paraíso) como vigoroso tema de pregação penitencial, de incitamento à conversão. 

Na evangelização franciscana, pela via da beleza, há de se nutrir o desejo de participação na eterna perfeição moral e estética do Cristo ressuscitado, escapando à perpétua deformação e vileza, acarretadas pela segunda morte.   

- Como publicano do Reino, o leproso cobra o dízimo da caridade. Esse imposto do Reino auxilia a quem pede, concertando-lhe a sobrevivência, mas beneficia infinitamente mais o doador, embelezando-lhe a alma.     

- Como sacramento de Deus, o leproso torna próximo, ao alcance do olhar virtuoso e da mão generosa, a presença de Jesus Crucificado. O encontro de Francisco com o leproso foi crucial, como a dizer-lhe: A cruz de Cristo, ei-la aqui. E, com efeito, no alto da cruz, Jesus assumiu todo sofrimento de cada uma das criaturas, do início ao fim da história. E a generosidade com o necessitado transcende o tempo atingindo na eternidade o próprio Deus. “Tive fome e me destes de comer ... Tudo que fizerdes a um destes pequeninos, a mim o tendes feito” (Mt 25). É a pedra de toque fundamental do juízo, conforme Jesus.  

O encontro com o leproso preparou o jovem de Assis para a dedicação à Igreja e o amor à Eucaristia, mas também inspirou Francisco 

- a completar uma teologia tradicional que entendia a salvação como relação apenas entre Deus e a alma. Para Francisco a salvação se exerce no encontro entre Deus, a alma e o outro, sendo esse “outro”, preferencialmente o leproso, o pobre, o empobrecido por qualquer carência, seja de natureza física, biológica, psicológica, ou pela desigualdade social.   

- Em forma lapidar, São Boaventura assevera que a desigualdade social provém da propriedade privada, que é fruto do pecado original (cf. Hexaêmeron XVIII).  Desde o início de sua conversão, assumindo radicalmente os valores do Reino, pelo amor de Jesus - o grande empobrecido pela kenosis e pela cruz, na qual se fez leproso, carregando o pecado do mundo -,  São Francisco abraçou integralmente a Pobreza, convidando-nos, fracos que somos, ao menos ao cultivo do usus pauper das coisas deste mundo:  desapego, partilha, anticonsumismo, respeito ecológico. 

- O leproso inspirou a Francisco o amplo abraço à criação de Deus, mesmo – e sobretudo - nas condições mais precárias da vida no presente mundo mau. A joia da coroa da espiritualidade franciscana é a proclamação da fraternidade universal de todas as criaturas. “Vos sois todos irmãos e irmãs” (Mt 23,8).. 

Que todos sejam acolhidos na mesa de nossas campanhas da fraternidade, mesmo aqueles excluídos, que, como os leprosos a Francisco, causam amargor à simples vista, se evita sequer mencionar, e até se contesta a concessão misericordiosa de Francisco (aqui, Papa) de um “Deus te abençoe”. 

Edmilson Soares dos Anjos    

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