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Preparando o Tríduo Pascal - 2024


 Preparando o Tríduo Pascal

                                                                                               

                                                                                                          Irmã Penha Carpanedo 


                        A reforma do Ano Litúrgico e do Calendário foi um empreendimento de inestimável valor, fruto do movimento litúrgico e da renovação litúrgica a partir do Concílio Vaticano II. O grande desejo foi o de resgatar a unidade do Ano Litúrgico, tendo como eixo estruturante o mistério pascal, para “alimentar devidamente a piedade dos fiéis” (SC 107). Tal novidade foi acolhida com entusiasmo e fervor no início da reforma litúrgica. Aos poucos o povo foi assimilando a teologia e a pedagogia do Ano Litúrgico. No que se refere ao Tríduo Pascal, houve uma progressiva apropriação do seu sentido teológico e das suas expressões rituais e somaram-se esforços em toda a parte para celebrar o Tríduo como memória anual da páscoa num todo unitário, como era nos primeiros séculos da Igreja. A Vigília Pascal, em muitas comunidades, recuperou o seu caráter noturno e voltou ao seu lugar de “mãe de todas as vigílias da Igreja”, ápice das celebrações pascais e de todo o ano litúrgico. Contudo, no momento atual, estamos assistindo a um esvaziamento, antes mesmo que pudéssemos chegar a uma maturação neste processo de reapropriação. Ou se cumprem as normas de uma maneira absolutamente formal, ou simplesmente se ignora a riqueza proposta pela reforma em seus princípios e orientações. E o vazio acaba sendo preenchido por iniciativas particulares e devoções, ou por expressões da piedade popular, nem sempre com o devido cuidado de fazer coexistir liturgia e práticas de piedade “no respeito à hierarquia dos valores e da natureza específica de ambas”. Como evitar um tal esvaziamento e tantas deformações? O que fazer para que as festas pascais sejam ponto alto na vida da comunidade, expressões de vida de uma Igreja que busca na liturgia sua primeira fonte de espiritualidade (cf. SC 14)? Não pretendemos aqui aprofundar exaustivamente todo o significado do Tríduo Pascal, nem temos a pretensão de oferecer solução fácil para um problema que mais parece ser estrutural. Queremos sim evidenciar algum elemento que nos ajude a não desviar a atenção da centralidade do mistério e a considerar a unidade e a superioridade das festas pascais em relação a todas as outras expressões da nossa fé.


Lembrando a história 


                    Até o século II a festa dos cristãos era o domingo, vivido e celebrado como dia de alegria, páscoa semanal. A partir do final do século II firma-se a prática de uma festa anual da páscoa, no domingo posterior ao 14 de Nisã (data da páscoa judaica). Até o final do século III foi a única festa anual da Igreja. Tratava-se da Vigília Pascal que durava toda a noite, culminando ao amanhecer com a eucaristia que marcava a entrada no Pentecostes, entendido como cinqüenta dias de festa e de alegria. A Vigília era precedida pelo jejum que se iniciava na sexta-feira e se prolongava por todo o sábado, até a celebração da eucaristia no sábado à noite. Os elementos essenciais eram a liturgia da Palavra e sua atualização sacramental na eucaristia, aos quais, mais tarde, acrescentou-se o batismo, com a bênção da água. Em torno da vigília foi se firmando, em uma unidade, a memória da crucifixão na sexta-feira, da sepultura no sábado e da ressurreição no domingo. Aos poucos prevalece a tendência de historicizar as narrativas evangélicas em torno dos acontecimentos da despedida, morte, sepultura e ressurreição. Inicialmente, celebrados numa perspectiva unitária, representou uma riqueza; mas esta unidade acabou em desagregação, desviando a atenção do essencial. O relevo excessivo dado à instituição da eucaristia, na quinta-feira santa, desviou a atenção do verdadeiro ápice da páscoa, constituído pela eucaristia na Vigília, e rompeu com a própria unidade do Tríduo, não mais constituído de sexta, sábado e domingo, mas de quinta, sexta e sábado. A sexta-feira era dia de jejum e limitava-se à liturgia da palavra. Mais tarde incorporou o rito da adoração da cruz. Passou a enfatizar o sofrimento de Cristo sem a necessária ligação com a noite da páscoa. A Vigília Pascal que começava ao pôr-do-sol do sábado, por vários motivos, foi progressivamente antecipada para a tarde do sábado, chegando a ser fixada ao meio-dia. Com o papa Pio XII, em 1955, sob o impulso do movimento litúrgico, o Tríduo Pascal começou a reconquistar a sua unidade e o seu sentido. Entre outras coisas, foi estabelecido que a missa da quinta-feira fosse celebrada à noite, não antes das 17 horas e não além das 20 horas. A liturgia da sexta-feira santa foi transportada para a tarde, de preferência às 15 horas ou depois, mas não além das 18 horas. A solene Vigília devia ser celebrada de preferência depois da meia-noite. O Concílio Vaticano II deu término a essa reforma resgatando a teologia e a prática do Tríduo Pascal, em consonância com a tradição que vem das comunidades cristãs dos primeiros séculos.



Em busca da unidade 


                    O Tríduo Pascal tem seu início com a memória da última Ceia do Senhor na quinta-feira à noite. 2 É celebração da páscoa do Senhor no decorrer de três dias: a sexta-feira da paixão, o sábado da sepultura e o domingo da ressurreição, com o seu centro na Vigília Pascal. Enquanto a memória da Ceia apresenta o mistério pascal em sua dimensão ritual, sexta, sábado e domingo o apresenta na sua dimensão histórica. Cada dia abre-se para o outro da mesma forma que a ressurreição supõe a morte, e a morte, por sua vez, possui a promessa da ressurreição. 

                     Na quinta-feira santa, a missa vespertina faz memória da última Ceia que o Senhor realizou com os seus, antes da sua morte. Essa Ceia sintetiza toda a vida e missão de Jesus que culmina em sua morte, assumida por amor ao Pai e aos irmãos. Trata-se da Ceia pascal judaica que Jesus celebrou e na qual ele próprio se entregou qual cordeiro do sacrifício para a redenção do mundo. 

                    A verdadeira eucaristia da páscoa é a da Vigília Pascal, no sábado à noite. Contudo, na missa em memória da Ceia do Senhor, na abertura do Tríduo, deve ser sublinhado que recordamos nela o que Jesus fez e mandou fazer: tomou o pão e o cálice, deu graças, partiu e repartiu... tomai e comei, tomai e bebei, este é o meu corpo; este é o meu sangue. Fazei isto em memória de mim. Repetindo os gestos que Jesus fez, na noite em que ele foi entregue, somos impulsionados pelo Espírito a devotar a nossa vida a uma causa, ao reino, como ele fez em seu amor até o fim. 

                   A Igreja dispôs a liturgia eucarística em quatro momentos de modo a corresponder às palavras e gestos de Cristo (preparação da mesa, ação de graças, fração do pão e comunhão). A celebração eucarística, de acordo com a tradição que vem de Jesus e das primeiras comunidades (cf. 1Cor 23-26), tem estrutura fundamental de Ceia. Se isso vale para toda eucaristia que celebramos, mais ainda para a celebração da quinta-feira santa, na qual é dada importância especial à comunidade, realizando o que Jesus fez e mandou fazer. Destaca-se a presença da comunidade reunida em sacramento de unidade. Recomenda-se que pelo menos nesta celebração se use pão (ázimo) em vez de hóstia, que a comunhão seja dada sob as duas espécies e com o pão consagrado nesta missa e não em uma anterior. Também por isso pede-se que o sacrário esteja vazio no início da celebração. 

                Nessa noite, consagrada à lembrança da eucaristia, a reserva eucarística será colocada numa capela à parte, em quantidade suficiente para a comunhão no dia seguinte, também para a comunhão aos doentes e para a adoração que se prolonga depois da celebração. Com essa prática, chama-se a atenção para o aspecto da presença permanente do Senhor nas espécies eucarísticas. Durante a adoração sugere-se a leitura orante do evangelho de João (capítulos 13-17), indicando o momento de adoração como tempo de mistagogia do mistério celebrado. 

                    Para a reposição do pão consagrado recomenda-se sobriedade; nunca a exposição em ostensório, nem o sacrário ou o cibório abertos, “para respeitar o significado das celebrações destes dias”. Também se deve evitar qualquer associação entre a capela da reposição com o sepulcro. A adoração seja feita por algum tempo durante a noite e, após a meia-noite, sem solenidade, quando então entra-se na grande meditação da paixão do Senhor e da sua momentânea ausência. 

                    Na sexta-feira, o relato da paixão segundo João apresenta Jesus realizando a obra da salvação não como vítima impotente e resignada, mas como alguém que conhece o sentido dos acontecimentos e os aceita livremente. Com essa visão joanina, a liturgia da sexta-feira santa não quer chamar atenção sobre o sofrimento em si, mas sobre a glória de Cristo, e sobre a sua vitória pascal. Na liturgia da sexta-feira santa a ênfase é dada à realidade da morte, mas não como fim em si mesma, e sim como promessa de vida e ressurreição que se tornará plenamente presente na Eucaristia da Vigília Pascal.

                    O elemento fundamental da liturgia da sexta-feira é a Proclamação da Palavra. O rito da apresentação e adoração da cruz nasce como ato conseqüente. A cruz é colocada no centro da Assembléia cristã como sinal pascal de vitória e do amor que vence o mal e a morte. Assim ela é aclamada e adorada. A Igreja ergue o sinal de vitória como que para tornar visível a própria palavra de Jesus: “Quando eu for levantado atrairei todos a mim” (Jo 12,32). 

                    O cenário da sexta-feira é o altar desnudado e as imagens cobertas, indicando o luto da Igreja. É tempo de jejum e meditação silenciosa. Sugere-se com insistência a Liturgia das Horas. O Ofício das Comunidades oferece ofícios para as diferentes horas do dia. Outra possibilidade é a Via Sacra, expressão consagrada da piedade do povo. Em muitos lugares há expressões como a memória das dores de Maria, a procissão do Senhor morto e tantas outras manifestações. É importante respeitar tais costumes locais, sempre, porém, de modo que apareça a primazia da ação litúrgica. 

                    Dando preferência ao horário das 15 horas, que lembra a hora em que Jesus morreu, a celebração começa com prostração e silêncio, seguida de breve oração, diante do altar despojado de toalhas, de velas e de cruz. Procede-se imediatamente à Liturgia da Palavra. Toda ênfase deve ser dada a essas leituras tão apropriadas. Em muitas comunidades é comum o grupo jovem encenar a paixão do Senhor depois da celebração litúrgica. Há, em alguns lugares, iniciativas no sentido de conversar com estes jovens para que possam integrar tais encenações na própria celebração. Nesse caso, a encenação do evangelho torna-se expressão de piedade, presença mistérica do evento litúrgico da paixão (anamnese) e não apenas representação dramática.

                     Para o rito da adoração da cruz, no caso de assembléias muito numerosas, é previsto um único gesto de reverência à Cruz, realizado ao mesmo tempo por todos. O que se deve evitar é a multiplicação de cruzes em função de agilizar a procissão, pois a verdade do sinal requer que a cruz seja única. Também não é uma solução muito pastoral transferir o gesto de beijar a cruz para depois da celebração. Se os cantos que acompanham o gesto pessoal são adequadamente escolhidos, este pode ser um momento de fecunda meditação. 

                    O rito da comunhão prevê o canto do Pai nosso; e durante a distribuição, o canto do salmo 22(21). Ao final, o altar volta a seu despojamento e a cruz é colocada no centro como referência para a oração pessoal. 

                    O sábado Santo é especialmente consagrado à memória da sepultura de Jesus, compreendida como sua máxima solidariedade com a nossa condição mortal. A sepultura é certificação da morte de Jesus. Marcos fala de cadáver (15,45). Três são as testemunhas da morte: José de Arimatéia, o centurião e Pilatos (Mc 15,42-47). José de Arimatéia providencia o enterro para que Jesus não seja jogado na vala comum, destino certo dos executados. A sepultura pertence à forma mais antiga do kerigma: “Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as escrituras; foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as escrituras” (1Cor 15,3-4).

                    Neste dia, a comunidade faz sua a atitude das mulheres em frente ao sepulcro (cf. Mt 27,61), numa atitude de espera, confiante na fidelidade da palavra de Jesus. No cenário deste dia, caberia o livro da Palavra, ou ícone de Maria, a mulher-símbolo do Israel fiel, primeira discípula a escutar, ela que esteve presente na Hora de Jesus em Caná e na Hora extrema da cruz. O sepulcro lacrado parece pôr fim a todas as expectativas; no entanto, a Palavra contém uma promessa e é a Palavra ‘guardada no coração' que impulsiona a Igreja-esposa a esperar do fim um novo começo... Há momentos em que se depara com o absurdo. No sábado santo, somos firmados na fé de que é possível transformar o absurdo, o inaceitável, em caminho de salvação... Neste dia não há celebração dos sacramentos e a comunhão só pode ser dada como viático. Mas há nas orientações uma insistência sobre a celebração do ofício divino durante o dia de sábado. Os salmos, leituras bíblicas e orações constituem uma riqueza que nos ajudarão a entrar no mistério deste dia, a fazer dele um retiro juntamente com os catecúmenos, à espera do grande anúncio da ressurreição. 

                     No coração da noite, com lâmpadas acesas nas mãos, como aquelas jovens do evangelho que esperam pela chegada do esposo, entramos na Vigília Pascal. Uma noite de vigília em ‘honra do Senhor' para recordar e reviver o evento da morte-ressurreição de Cristo, em clima de amorosa espera. Vivendo desde já a páscoa que celebramos, nós o fazemos com a firme esperança de que esta se realize sempre mais profundamente em nós e no mundo.

                     Toda a celebração da Vigília Pascal deve se desenvolver durante a noite. A imagem da noite iluminada exprime, no plano simbólico, melhor que qualquer conceito, o mistério mais profundo da páscoa: a passagem da escravidão para a liberdade; a passagem de Cristo da morte para a vida; a passagem da comunidade das obras das trevas para viver como filhos e filhas da luz. 

                    Os ritos da vigília, embora organizados em várias partes, formam um todo único em torno do núcleo essencial da proclamação da Palavra de Deus e da celebração dos sacramentos pascais do batismo, da crisma e da eucaristia, ápice da iniciação cristã e ponto culminante de todo o Tríduo Pascal. Se na quinta-feira santa damos ênfase à reunião da Igreja, repetindo os gestos de Jesus na última ceia, com mais razão devemos enfatizar a liturgia eucarística da Vigília Pascal; de tal forma que apareça claramente sua estrutura de Ceia, todos podendo comungar do pão santificado nesta missa e também do vinho, com plena consciência de que se trata do sacramento pascal, memorial do sacrifício da cruz e presença de Cristo ressuscitado.

                     Com a Vigília Pascal, entramos no grande domingo da páscoa, que será prolongado por cinqüenta dias de festa e de alegria. O cenário é sugerido pelas portadoras do perfume que vão ao túmulo para completar o rito do sepultamento, feito às pressas na tarde da morte, e descobrem o túmulo vazio. Fazemos nossa a profunda reverência do discípulo amado diante do AMOR que vence a morte e a alegria da comunidade que escuta dos mensageiros o anúncio da ressurreição.





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