Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência da Cidade de São Paulo
Igreja das Chagas do Seráphico Pai São Francisco
Documento Histórico
PARECER SOBRE O TOMBAMENTO DO CONJUNTO HISTÓRICO DAS IGREJAS FRANCISCANAS – IGREJA DO CONVENTO DE SÃO FRANCISCO (ORDEM PRIMEIRA) E IGREJA DAS CHAGAS DO SERÁFICO PAI SÃO FRANCISCO DA VENERÁVEL ORDEM TERCEIRA DE SÃO FRANCISCO DA PENITÊNCIA DA CIDADE DE SÃO PAULO, LOCALIZADAS NO LARGO SÃO FRANCISCO, CENTRO, NO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO, ESTADO DE SÃO PAULO, COM SEUS BENS MÓVEIS E INTEGRADOS
Parecer SEI nº 5342011, do Conselheiro Flávio de Lemos Carsalade
Comentários & Excertos
O Parecer se articula em sete entretítulos:
Do tempo do reconhecimento do bem cultural;
Do tempo franciscano;
Do tempo da matéria;
Do tempo do fazer;
Do tempo além da matéria;
Do tempo da cidade;
Do tempo do reconhecimento.
Na Introdução, o parecerista ressalta “a preciosidade” das igrejas do Largo São Francisco em São Paulo e sua transcendência, pois o maravilhoso espanto que despertam abrem algo “como uma porta que nos conecta a uma outra dimensão da realidade”. Mas refere-se também a um outro espanto: a demora de mais de sessenta anos de trâmite processual, que exigiu a superação de parâmetros fechados de avaliação e a conjugação dos critérios de arte e história, e, como mais tarde, dirá o Parecer, metafísica e realidade quotidiana, com a junção dos critérios de “contemplação e ação”, necessários para apreciar a beleza estética e a contínua importância histórica e social do Conjunto Franciscano.
“Não estão ali presentes apenas aspectos estéticos dignos das belas-artes, termo francês que designa os expoentes, as excepcionalidades da produção cultural de uma determinada civilização, mas em suas paredes, o conjunto das duas igrejas nos revela muito da história de nosso país, da sua formação, das suas questões sociais, das histórias contadas e daquelas não contadas”.
Em “Do tempo do reconhecimento do bem cultural”, o Parecer detalha o longo tempo de tramitação do processo de tombamento do Conjunto Franciscano: de 1958 a 2024, com extensos períodos “em que nada ocorreu”, como de 1962 a 2006, a exigir o cultivo de “uma paciência franciscana”.
Em “Do tempo franciscano”, diz “Embora não seja católico, este parecerista se confessa”: e confessa uma admiração por São Francisco “em seus ideais de pobreza, de solidariedade, de compaixão e de religiosidade, no sentido de re-ligare”. Neste contexto, o Parecer destaca o andor da Cúria, que saía nas concorridas procissões de Quinta-Feira Santa, desde o século XVII, atualmente recriado a partir da sobrevivente cadeira do Pontífice e de velho crucifixo. “A recriação do encontro do santo com o Papa no espaço museológico da Igreja das Chagas, embora alegórica, sem pretensões estéticas e meramente ilustrativa, revela a suntuosidade papal em contraste com a humildade e nos revela um pouco dos descaminhos de nosso mundo tão injusto, e de nosso país, “tão pobrinho”, como a ele se referiu o poeta Vinicius de Moraes”.
Após lembrar as etapas da construção da Igreja da Ordem Primeira, desde a chegada a São Paulo em 1639, e a doação, em 1642, do terreno onde seria construído o Convento e a Igreja de São Francisco, inaugurados em 17 de setembro de 1647, registra o Parecer:
“A construção da Igreja (diga-se Primitiva Capela) da Ordem Terceira se dá em 1676. Entre 1783 e 1788, constrói-se a atual Igreja das Chagas do Seráfico Pai São Francisco”
“Hoje, as duas igrejas e o prédio da Escola de Direito, compõem uma das mais completas tradições de São Paulo, por sua presença, beleza e situação diferenciada de irmandade e vizinhança, fazendo até com que eles merecessem estar na lista do Caetano, na canção `Sampa`”.
“O Marquês (de Pombal, refere-se) proibiu a recepção de novos Frades Menores. O Imperador confiscou o convento. A República não devolveu muito aos franciscanos. Todos deixando-os, por assim dizer, com as sandálias nas mãos. Mas como a fé não costuma faltar, a persistência da Ordem continuou transmitindo o seu legado. História que continua, presença que permanece”.
“Do tempo da matéria” informa que “a Igreja do Convento foi construída em taipa-de-pilão, nave única retangular, entre 1642 e 1647”. Também a Igreja das Chagas foi construída em taipa de mão e taipa de pilão, pois São Paulo tinha dificuldade com a obtenção de pedras. A Igreja da Ordem Terceira possui excelente exposição desse tipo de construção em barro, característica das edificações da velha São Paulo. Não se trata de mostra de uma parede ou parte de uma parede apenas, mas de contato com a própria estrutura arquitetônica, duas grossas paredes de taipa de pilão, amarradas entre si por pau a pique; restaram até andaimes usados pelos negros taipeiros, além de farta documentação sobre o trabalho construtivo com pagamento de mão de obra e aquisição de materiais..
Diz o Parecer sobre a Igreja da Ordem Terceira: “Se o anjo serafim fez das chagas do Cristo os estigmas do santo, o templo seráfico deveria honrar o ato sublime. E assim fez, em forma de cruz latina, com luz descendo do céu e com brilho necessário em seus ornamentos. Da primitiva capela erigida por volta de 1676, desde sempre remodelada em busca de melhor honrar a memória do ato seráfico, o frade franciscano, dublê de arquiteto, Frei Galvão, sonhou alto e lhe conferiu as feições atuais, no ano de 1787. Sem demolir a capela, apenas acrescentando nave e presbitério, deu-se o milagre da cruz latina com transepto ortogonal e zimbório com duas partes em claraboia e seis pinturas, céu divino misturado com céu terreno”
“Enquanto o forro da capela mor nos faz levitar, o forro da nave em arco abatido apenas ostenta um medalhão, em sobriedade respeitosa ao altar mor e reservando o foco de atenção à sequência de altares laterais que celebram Santo Antônio de Categeró, a Divina Justiça, Santo Ivo, Santa Isabel (de Portugal), Santo Antônio de Pádua, todos perfilados a nos proteger e conduzir ao altar. O conjunto ainda abriga além da sacristia, diversas salas onde se dão serviços administrativos, e também, principalmente um espaço museológico que reúne bens móveis de grande qualidade e interesse e livros e objetos que buscam dar uma ampla e variada informação aos visitantes, sintonizando-o com o clima da igreja e da Ordem. Os franciscanos, como de hábito, querem bem receber”.
Em “Do tempo do fazer”, nota que “A Igreja de São Francisco (Ordem Primeira) exibe, em seu espaço, bens integrados em talha, carpintaria, serralheria, azulejaria, cantaria, vitrais, luminárias e pinturas de forro que extasiam o visitante e elevam os fiéis... em uma dança do todo e das partes que movimenta a alma. A tarja que exibe a simbologia franciscana da mistura das chagas de Cristo com os estigmas do santo sempre me parece lembrar os princípios de contemplação e ação”.
Já “o templo seráfico revela os bens móveis e integrados de maneira um pouco diversa, mas igualmente rica. Nele os bens ganham uma identidade mais individualizada, o que talvez seja resultado da disposição de sua planta em cruz latina e da maior distinção das capelas. Os retábulos de Nossa Senhora da Conceição e de São Francisco dominam o ambiente, por sua exuberância e movimento, em diálogo eterno não só entre o santo e a santa, mas com todos nós que não conseguimos parar de admirá-los. O retábulo de São Miguel veio de outra igreja e isso é claro quando o vemos, mas foi necessário para obturar aquela que seria uma lacuna no templo. O retábulo proveniente do mosteiro de São Bento não encontrou lugar no cenário principal, mas resiste no espaço museológico como testemunha do desmonte das igrejas do estado de São Paulo, já detectado por Germain Bazin. Os retábulos laterais da nave são verdadeira procissão de santos a nos guardar e nos conduzir, com qualidade excepcional de talha e ornamentação. O mobiliário e as peças artísticas, pequenas esculturas, pinturas e relicários brilham também em meio à visita que se pode fazer ao espaço museológico, uma vez que imagens que antes saiam em procissão, não mais o podem fazer”
“Trata-se, portanto, de um acervo riquíssimo que, em conjunto, nos revela momentos diferentes da evolução da arte barroca ao rococó e uma presença não apenas estrangeira, mas principalmente brasileira, no fazer de cada uma das peças”.
Sobre “Do tempo da matéria”, eis a íntegra do Parecer. Inicia tratando da Igrejas das Chagas:
“Indígena que carrega a matéria, negro que a ergue, europeu que custeia e manda fazer, brasileiro que desenha. Assim descreve o prédio o seu guardião, Vice-ministro da Fraternidade, Sr. Edmilson Soares dos Anjos (nome muito a propósito, diga-se) ao revelar suas entranhas, deixadas expostas em alguns cantos. Hoje não mais podemos separar as belas artes do trabalho que as criou e a consciência disso nos faz indagar se os livros de registro patrimonial do Iphan e as narrativas dos bens tombados não tendem a congelar uma imagem de uma bela arte metafísica desvinculada da sua realidade, seja ela relativa à sua própria constituição, seja ela de seus encontros com o tempo histórico”.
“São Francisco não houvera de gostar de ver sua igreja isolada do mundo ou dos homens, apenas como uma fotografia na parede. A motivação franciscana se funda na contemplação e na ação. A contemplação não pode ser confundida com visão congelada de uma bela forma, mas deve ser compreendida como impulso a um estado mais sublime de alma, nada estático, mas ativo, movimento que o próprio barroco propõe. De certa maneira, contemplação é também saber onde estão as fundações da forma, quem as ergueu, em que condições e como. A estética nos revela não apenas o mundo transcendental, mas também o real, afinal, arte é feira por mãos humanas, não pelo sopro dos deuses”.
“A matéria, embora nos pareça imóvel e rígida, interage o tempo todo com o lugar e com o tempo. Não existe sem existir. Ela vai se conformando com o tempo e com as demandas da sociedade e dos fiéis e isso vai se incorporando em suas paredes e volutas. O templo seráfico nos revela isso. A Ordem que não permitia a inclusão de negros teve no mulato Paulo Monteiro seu melhor e maior guardião. Sendo ministro da Ordem entre 1934 e 1972, apesar do interdito, trabalhou toda a sua vida em prol da igreja dos brancos. São Francisco deve ter gostado disso, afinal para ele, a distinção por cor de pele seria absurda. Dona Maria Cecília Martins, outra negra, se tornou exemplo da alma franciscana por sua dedicação e compromisso, dando nome ao bazar da Ordem, “ela muito amou e no entardecer da vida examinar-te-ão no amor” (dizeres da placa em sua homenagem). Isso é ação, fundamento franciscano que também se revela em seu espaço. Se arquitetura existe para propiciar vida, é nela que se dá a ação e não é possível, pela natureza dessa arte, desvincular matéria e beleza de uso e fruição, ou seja, ação e contemplação”.
“As igrejas, irmãs siamesas, receberam fiéis, os acolheram cada uma a seu jeito, mas também receberam refugiados nos anos de chumbo e gente com todo tipo de fome. A presença da Ordem Primeira, em São Paulo desde 1647, sempre foi de ação, como, por exemplo, ao socorrer os pobres com o necessário alimento do corpo, além do espiritual. Na Rua Riachuelo, mesmo quando nem rua havia, o lugar já era conhecido como “porta dos pobres”. E depois, nos dias de hoje, na páscoa se oferece o chá do padre, as “noites solidárias” abrigam pessoas em situação de rua nas frias noites paulistanas de inverno, e também emite documentos para pessoas em vulnerabilidade social ... Há como desvincular a matéria de seu espírito?”
Em “Do tempo da cidade”, anota que “O Largo São Francisco é um dos vértices da São Paulo original, marco inaugural de uma cidade que nunca dorme e não para de crescer; É uma âncora da memória, referência da identidade paulistana e ponto de atração cidadã. A questão locacional, neste caso, reforça enormemente a importância cultural do bem, mas não pode ser considerada apenas como marco histórico. Como procuramos mostrar anteriormente, a vida dos prédios se confunde com a da cidade e esse é um aspecto muito importante quando tratamos da função social do patrimônio cultural”.
O Parecer aponta que a atual situação de injustiça social na cidade, no Largo e no país constituem também um enquadramento das duas igrejas.
Em “Do tempo do reconhecimento”, o parecerista (mineiro) “ao embarcar na missão de reconhecimento desse maravilhoso patrimônio paulistano”, aproveita a oportunidade para “agradecer aos paulistas” e retribuir a Mário de Andrade que, na caravana modernista de 1924, “descobriu” a riqueza das igrejas das cidades históricas de Minas, e fez com que “fossem as primeiras a serem tombadas pelo Iphan em seus anos iniciais”, “dizendo ao Mário e seus companheiros que as igrejas franciscanas de sua cidade nada ficam a dever às suas irmãs mineiras e merecem ser tombadas nos livros nacionais de registro”.
O parecerista salienta a necessidade “de se superar a visão de arte apenas como expressão metafísica ou estética. Essa visão ... tem de ser substituída por seu entendimento cultural e histórico maior ... Temos de reconhecer o valor cultural do bem através da história que chega até os nossos dias, do envolvimento do bem com a vida nacional em todos os seus tempos de existência. Para isso existe a arquitetura, para propiciar a vida: ela deve ser incorporada aos valores do prédio Além disso, temos de ajuntar aos nossos relatos, a menção não apenas aos artistas notáveis, mas aqueles anônimos que ergueram suas paredes e à caracterização das condições em que isso ocorreu. E, dentro do entendimento de que a história do bem não para no momento de sua fatura, identificar também os personagens que o acompanharam ao longo de sua existência”.
E por fim conclui o Parecer “com uma enfática recomendação para o tombamento das duas igrejas paulistas do Largo São Francisco com todos os bens móveis e integrados arrolados nos pareceres técnicos que subsidiaram este documento. Mas também gostaria de concluir celebrando os ideais franciscanos de ação e contemplação, os quais, tão a propósito devem ser inspiração para proteger nossa riqueza e identidade comuns”.
Belo Horizonte, 21 de abril de 2024
Conselheiro Flavio de Lemos Carsalade
Representante do Icomos Brasil
Ata da 104ª Reunião do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, realizada em 8/9 de maio de 2024,
O Parecer SEI nº 5342011 foi lido na íntegra e aprovado por unanimidade, com elogio do Presidente Leandro Grass que “agradeceu pelo brilhante parecer, com essência cidadã, destacando a função social para além da religiosa, que alcança direitos e alcança a inclusão de pessoas”. Os demais conselheiros (as) “parabenizaram o relator pelo parecer muito bem elaborado, lírico, tom menos burocrático, sem perder qualidade nem conteúdo humano e preciso; mostrando valores antigos que assumiram novos valores e novos sentidos para sua preservação. A conselheira Flávia Brito sugeriu que seja considerado o tombamento do largo, da Faculdade de Direito, por ser um marco de resistência pela luta política pela democracia; sugestão que foi apoiada pela Conselheira Sylvia Fischer, que realçou a importância de incluir os espaços vazios no Largo São Francisco. O Diretor do Departamento do Patrimônio Material, Andrey Schlee, em resposta às sugestões de incluir a Faculdade de Direito e o Largo, explicou que quando o processo chega para aprovação no Conselho, já houve toda a instrução pela identificação do bem, e que sugere que se mantenha como está o processo e que se inicie novo processo para ser instruído e posteriormente voltar ao Conselho que contemple essas sugestões”.
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