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Altar-mor da Igreja das Chagas

 Altar-mor da Igreja das Chagas 


Gólgota e Tabor  


Entalhador: José Fernandes de Oliveira. Data: 1791/1792. Medida: 12 x 6 m. Madeira (cedro). Pintura e decoração: “toda a cargo” de José Patrício da Silva Manso. Execução: 1792/1793 (cf. Livro de Receitas e Despesas 1783 1851; ORTMANN, 1951, p. 326). Última restauração: Meados século XX. Douradores: Carlos Teixeira Chaves (pai), Waldemar Teixeira Chaves (filho). O Altar-mor da Igreja das Chagas conta com douramento “sem equivalente em nenhum outro lugar do Brasil’” (Prof. Percival TIRAPELLI). 

Descrição do conjunto escultórico 

O esplêndido Altar-mor da Igreja das Chagas, ricamente dourado, é encimado por conjunto barroco representando São Francisco recebendo os estigmas com a visão do Cristo Seráfico — místico evento ocorrido há 800 anos, por volta de   17 de setembro de 1224, no monte Alverne. 

A imagem central de Jesus crucificado, em madeira policromada, com as seis asas de serafim e imponente resplendor, medindo 4,00 x 2,40 m, tem a seus pés a imagem de São Francisco ajoelhado, em escultura de madeira policromada e tecido, que é composta sob a forma de santo de roca: cabeça, mãos e pés, além de armação, coberta por hábito marrom, medindo 1,50 x 0,97 m.  Serafins” significa “abrasadores”, são os anjos da face, espíritos abrasados pelo fogo do amor de Deus, que entoam sem cessar “Santo, Santo, Santo” junto ao trono da presença divina no céu, tal como descreve a teofania de Isaías 6. Atendendo ao significado, a douração das asas se fez afogueada, dourado-avermelhada, com emprego de ouro acobreado. 

O conjunto escultórico provém de 1740 e foi doado pelo Irmão Capitão-mor Manoel de Oliveira Cardoso com a condição de que figurasse sempre no altar principal, ao tempo, da Primitiva Capela, depois, da Igreja das Chagas. O conjunto é coroado por brasão com o emblema da Família Franciscana: o braço despido de Jesus cruzado pelo braço vestido de São Francisco, ambos com as chagas; ao centro, a Cruz.  

Acima do retábulo, existe uma claraboia, construída em fins do século XIX, para entrada de iluminação solar, o que, na penumbra da Igreja, causaria impressionante teatralidade, ora e obstada pelo telhado sobreposto. 

Compreensão do conjunto central 

Embora na fachada da Igreja das Chagas se expresse com majestosa serenidade, o barroco não é tão somente linear e plácido, antes manifesta, em seus retábulos e iconografia, surpresa, vivacidade e contorção, e acentua o caráter agônico da caminhada da vida, mas o resgata pela beleza. Também o Cristo Seráfico exprime o surpreendente projeto amoroso de Deus: assume o sofrimento do mundo e o carrega, não procedendo, porém, como um atlante que tudo, resignada ou forçadamente, sustenta e mantém, mas como “Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo”, e, pelo seu sacrifício, o transforma, liberta e redime. 

O conjunto central da Igreja das Chagas figura o Gólgota revestido pelo Tabor, sofrimento e glória, agonia e êxtase, transfiguração da dor, a mais pungente, pela fascinante alegria do mais belo amor.  

A visão do Cristo crucificado e coroado de espinhos pode ser compreendida à luz de Colossenses 1: “pois nele aprouve a Deus fazer habitar toda a Plenitude e reconciliar por ele e para ele todos os seres, os da terra e os dos céus, realizando a paz pelo sangue da sua cruz” (v. 19-20, Bíblia de Jerusalém).  

O corpo humano do Cristo, ápice da criação terrestre, material, visível, agrega a si na cruz as asas dos serafins, ápice da criação celeste, espiritual, invisível, englobando todo o mundo criado. No Cristo Seráfico revela-se a chave de leitura do universo, de quem ele é a causa material (“nele foram criadas todas as coisas” v. 16); a causa formal (“tudo nele subsiste” v. 17); a causa eficiente (“por ele” v. 16); e causa final (“para ele” v 16). Além disso, ele é a causa processual histórica da afirmação de que este mundo de dores não fracassará, pois porta em si a certeza de seu bom termo, uma vez que tendo sido assumido por dentro, a partir do seu interior, pela Encarnação do Filho de Deus, a salvação de todos os seres foi então alcançada “pelo sangue da sua cruz”, que reconciliou com o propósito divino toda a criação.  

Na brilhante visão do Cristo Seráfico, como princípio, meta e realização do mundo, foi dada a Francisco, abrasado adorador da presença eucarística de Deus na terra, a alegria de incorporar-se a ele, e carregar visivelmente no corpo, como selo de reconhecimento, as chagas do Crucificado, testemunhas do processo de Ressurreição, que já vigorava no pobre de Assis desde a sua conversão. 

Se buscamos a glória do céu, a catequese do conjunto escultórico do Altar-mor da Igreja das Chagas ensina: A nossa vida presente, nós a devemos viver aos pés de Jesus Crucificado, como São Francisco.   

Mas onde está Jesus Crucificado - “para que eu também vá adorá-lo? Onde está Jesus no horto – para que eu também vá beijá-lo? Ou: Não é a crucificação fato passado da história, transcorrido há dois mil anos, superado há muito pela ressurreição  São tantos os Gólgotas, porém! Tanto Jesus é crucificado em cada um! “Tive fome e não me deste de comer ... O que fizestes a um destes pequeninos a mim o tendes feito ... é critério do Juízo. São Francisco nos encaminha a uma piedade atenta, pois no calvário de cada ser a paixão de Jesus Cristo dura até o fim do mundo, e se oferece como necessidade e oportunidade do abraço transfigurante de um novo, sempre renovado, um dia definitivo, Tabor. 

 

O retábulo e sua estética  

O retábulo em talha de cedro, dourado e com pintura branca (hoje azul) contém elementos comuns do barroco (tronos, ornamentação fitomorfa, douração exuberante); em lugar de colunas torsas, colunas de fuste com caneluras, pilastras caneladas, enfeites de rocalhas e concheados, características do rococó, coroamento do barroco (cf. ETZEL, 1974, p. 29). 

Trata-se de retábulo cintilante de ouro, que, juntamente com a joia do barroco colonial português em São Paulo, que é o retábulo do Altar da Imaculada, representa maravilhosamente a estética tridentina que visava refletir na igreja terrena a glória da casa de Deus no céu (cf. COSTA, 2014, p.10). Bem iluminados, os retábulos do Altar-mor e da Imaculada resplendem e elevam, inspiram contemplação, propagam a majestade divina, o temor reverencial, o encanto, a admiração religiosa e o desejo da Jerusalém Celeste. Particularmente o retábulo do Altar-mor compõe singular e artístico testemunho de que, mesmo no sofrimento, Deus é belo e ama a beleza, e ambos os retábulos constituem magnífico exemplo de evangelização pela “via pulchritudinis”. 

 

A integração barroco-rococó   

Segundo a Professora Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira, “o ato de transpor a porta de entrada de uma igreja mineira da fase barroca, como as Matrizes de Tiradentes ou Pilar de Ouro Preto, produz uma sensação de surpresa e encanto” (OLIVEIRA, 2014, p. 90). Tal “sensação de surpresa e encanto” pode ser experimentada certamente por aquele que transpõe a porta de entrada da Igreja das Chagas em São Paulo.   

Em conformidade com recentes historiadores, a citada Professora procura evidenciar a “total” distinção entre barroco e rococó: “O barroco e o rococó são estilos diferenciados e com características próprias”, e recusa a tradicional compreensão do rococó como “fase final do barroco” (OLIVEIRA, 2014, p.9). No entanto, talvez se pudesse salientar a fluente conectividade entre o barroco e o rococó, que ressalta da fácil composição, incorporação e sucessão destes dois estilos, conforme os termos empregados em “Barroco e Rococó no Brasil” pela Professora: “integração”, “aliança”, “hibridismo”, “congregação”, “superposição” (cf. OLIVEIRA, 2014, p. 17; 41; 59; 78; 102). Tanto o barroco aliou-se francamente ao rococó, aproveitando temas ornamentais, quanto o rococó chega a utilizar até mesmo as colunas torsas salomônicas, tão próprias do barroco (cf. OLIVEIRA, 2014, p. 26; 57; 68; 102.  

Elucidar distinções de estilo e origem (barroco – religioso; rococó – palaciano) é necessário e esclarecedor. Contudo, além de asseverar forte contraposição ou irremissível diferença de variações que desembaraçada e harmonicamente se conjugam servindo a um mesmo fim: o esplendor da fé católica, quem sabe seria apropriado também assinalar a sequencial familiaridade, ou familiar sequencialidade, entre o barroco e o rococó até a “fusão” (COSTA, Título Tese) na arte religiosa luso-brasileira. 

Sobre a Igreja da Conceição dos Militares (Recife), “construída em 1757, já no final da época joanina, incorporando fundos brancos nos douramentos”, diz a Professora Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira: “A visão global do conjunto, que associa os efeitos luminosos dos douramentos ao colorido forte das pinturas, produz sensações de fascínio, sugeridas pela estética barroca, aliadas ao encantamento, sugerido pelo rococó” (OLIVEIRA, 2014, p. 41). Tal bela apreciação de “fascínio” e “encantamento” costuma ser expressa por todos aqueles que têm a oportunidade de contemplar, sem preconceitos (culturais, regionais, acadêmicos, institucionais ou religiosos) o maravilhoso resultado artístico da formidável aliança entre o barroco e o rococó tão felizmente entrelaçados no Altar-mor da Igreja das Chagas do Seráphico Pai São Francisco em São Paulo. 

Ao final da tarde de sexta-feira, 16 de agosto de 2024, uma pequena senhora negra, Dona Helena, 92 anos, contou-me que viera de muito longe à Igreja das Chagas por devoção a Santo Antônio de Categeró, e tendo adentrado até o cruzeiro, admirou-se de tal forma com a beleza do Altar-mor e do Altar da Imaculada que não pode deixar de exclamar: “Que maravilha! Até me veio uma alegria tão grande! Isto aqui é um pedacinho do céu!” 

É um selo de reconhecimento à Igreja das Chagas, quiçá mais precioso que o tombamento pelo IPHAN — mas com ele não conflita, converge.  

 

Edmilson Soares dos Anjos   

Medidas: Wilma Saraiva Satto 



Altar-mor da Igreja das Chagas: Gólgota e Tabor 

O conjunto central da Igreja das Chagas figura o Gólgota revestido pelo Tabor, sofrimento e glória, agonia e êxtase, transfiguração da dor, a mais pungente, pela fascinante alegria do mais belo amor.   


 

BIBLIOGRAFIA   

COSTA, Mozart Alberto Bonazzi da, A talha no Estado de São Paulo: determinações tridentinas na estética quinhentista, suas projeções no barroco e a fusão com elementos da arte palaciana no rococó, Tese de doutorado, FAU-USP, São Paulo, 2014 

ETZEL, Eduardo, O Barroco no Brasil, Melhoramentos/EDUSP, São Paulo, 1974 

OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de, Barroco e Rococó no Brasil, Editora C/Arte, Belo Horizonte, 2014;  

ORTMANN, Frei Adalberto, OFM, História da Antiga Capela da Ordem Terceira da Penitência de São Francisco em São Paulo, IPHAN, Rio de Janeiro, 1951.   

TIRAPELLI, Percival - Templo da Arte Barroca”, Veja São Paulo, 18/06/2014.   

TIRAPELLI, Percival - O renascimento barroco paulista, Revista FAPESP, 17/03/2017.  

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