Na moita de espinheiros
Tarde da noite. Imerso em tristeza. Orava. As dores do mundo, todas, conflagravam-me a alma. A negação da vontade de viver me avassalava. Figurava-se que, desde o primeiro instante, a prece arcana e fundamental do meu ser fora tão somente:
— Ó Senhor, não me cries! Por favor, não faças tal ... Poupa-me. Não quero participar do jogo sem sentido da tua malfadada criação.
Sequer percebi a aproximação do Grande Demônio, que da angústia que me assombrava a alma, porém, toda virulência pressentiu, e acercando-se lentamente, em cruel manifesto, desnudou em seu seio um quadro universal, extrato de todos os momentos do mundo — passados, presentes e futuros. Eu vi. E o que vi era a realidade das criaturas. Uma trágica visão desenrolou-se aos meus olhos. Um cervo, perseguido por matilha furiosa, se embrenha mata adentro, e já cansado, já pobre, desprovido de tudo, se aninha numa moita de espinheiros, e revira os olhos angustiado à procura do deus, do seu deus, de um deus dos cervos porventura existente, e nada encontra, e nada vê, senão a boca escancarada dos cães, que o despedaçarão e o devorarão.
— Ah! — pensei — quantas pessoas e quantos grupos humanos sentiram-se assim no decorrer da história!
Lembrei-me daqueles empobrecidos de Canudos, que, cercados na cidade perdida, perscrutavam o céu à espera de uma manifestação urgente da divindade. E não houve manifestação alguma, senão a parusia trovejante e relampejante do canhão — e logo da bala dos vencedores.
E eu ouvi, ademais, do seio abissal do Grande Demônio, levantava-se um “Ai” magoado e profundo. Era o dolente gemido universal. E revelou-se que, não só naquele momento que eu então percebia, mas a todo e a cada instante das eras sem fim, não eram milhões, tão pouco bilhões, mas trilhões, muitos trilhões de seres que se despedaçavam nas mais angustiantes macerações do desespero e da dor.
Em meio ao plangente lamento e horror da criação, assaltou-me opressora e soturna a voz do Grande Demônio:
— Deus falta na hora decisiva. Deus não está na hora da morte. A salvação, a libertação, a redenção são como as trôpegas preces. Elas mancam. Chegam somente depois que a destruição, a escravidão e a morte completaram o seu trabalho.
Eis que do pélago assombroso em que eu inerme soçobrava um sopro do Espírito me suscitou todavia.
— Não! Grande Demônio — exclamei. Deus não tarda! Nem há qualquer distância entre nós e Deus, pois que “nele nos movemos, existimos e somos”. “Antes que uma palavra esteja sobre a minha língua, o Senhor já a conhece toda”. É estrela brilhante da fé que me guia a certeza de que “todas as coisas concorrem para o bem daqueles que amam a Deus”. Por isso persistirei, entoando a Canção das Criaturas na moita de espinheiros, e lograrei discernir, para lá da garra, do dente, da bala assassina, não uma deficiência trágica da fé, mas a nossa irmã, a morte corporal, da qual vivente algum pode escapar, que, de forma dramática, é certo, mas decisiva, descerra o véu da Eterna Presença, onde toda lágrima será por fim enxugada.
—Ah, filho do homem — me disse —, a platitude da tua ingenuidade me desconcerta. Houvesse bem em mim, eu desejaria, quem sabe, alguma felicidade a ti e aos aflitos teus irmãos.
—Grande Demônio — lhe disse —, já um Outro, infinitamente maior e melhor do que tu, proclamou: “Felizes os aflitos”. E prometeu na verdade: Seja a abundância das lágrimas penhor de maior consolo. Não me atormentes. Proíbo-te! Retira-te. Deixa-me.
Ele mudo saiu.
Até outro tempo.
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