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Iconografia antoniana



Do grego, ícone (eicón) traz consigo uma idéia de imagem, representação de uma coisa sagrada. Iconografia, como derivada, é a ciência que caracteriza o estudo, a descrição e os conhecimentos de imagens.

Há, de certa forma, na palavra um relativo equívoco, uma vez que ícone é uma representação plana (quadro) e não tridimensional (imagem). Mas como modernamente iconografia é a ciência dos quadros e imagens sacras, vamos lá. Quase como sinônimo, temos a palavra iconologia.

Toda imagem, toda obra de arte, tem em si uma leitura, feita através de atributos e sinais identificadores. Essa leitura pode mudar de acordo com os tempos, os enfoques históricos e a interposição de ciências particulares.

O artista coloca suas palavras através da obra de arte que ele cria. O público, através dos tempos, estabelece critérios de leitura e releitura das obras de arte, sejam elas mundanas ou sacras.

Os símbolos favorecem a hermenêutica, a leitura interpretativa de uma imagem. Os atributos detalham a simbologia. A iconografia de Santo Antônio – pinturas, estátuas e outras expressões artísticas – apresenta grande variedade e riqueza e propicia uma leitura muito ampla da vida e da santidade do retratado.

Olhando as imagens, santinhos e quadros mais conhecidos, nota-se logo a incidência de alguns traços e símbolos que permitem a diferenciação. Como sabemos a diferença, por exemplo, entre São Jorge e São José?

A iconografia nos dá muitas pistas: um aparece vestido de guerreiro, montado a cavalo, combatendo um dragão. O outro é representado por um homem idoso, com o menino Jesus no colo, e geralmente portando um lírio ou um bastão de peregrino. Uma breve visão iconográfica nos possibilita a identificação.

A iconografia é, sem dúvida, uma bela e significativa expressão da religiosidade popular. O povo cria suas imagens, onde o homenageado é quase sempre jovem, belo, transpira santidade e veste-se, quando não ricamente, pelo menos de modo bem apurado.

É a representação, por exemplo, em imagens de Nossa Senhora, onde ela aparece ricamente vestida, com jóias e coroa de ouro na cabeça. O imaginário popular exacerba-se na representação devocional.

A iconografia inspira a evolução de religiosidade. Nessa práxis, os devotos apreciam mais olhar a imagem ou o santinho, do que ler a biografia ou estudar os escritos ou discursos do santo homenageado.

Na verdade, por uma leitura correta dos símbolos e atributos de uma imagem, podem-se estabelecer alguns traços da biografia de um santo.

Para avançar, vejamos a diferença entre símbolos e atributos, em iconografia.

Os símbolos dão a idéia geral da imagem e alguns critérios de interpretação. Por exemplo, na imagem de Santo Antônio, há símbolos de santidade, pertença à Ordem Franciscana, eleição divina e indicação de que foi pregador.

Esses símbolos, santidade, eleição, pregador e franciscano, são mais ou menos universais e imutáveis. Os atributos, que os caracterizam, o lírio, o menino, a Bíblia e o hábito são mutáveis e sujeitos, a cada época, a um tipo de leitura.

Vejamos os atributos:

a) O hábito franciscano – É um atributo que aparece desde a primeira hora e sempre serviu como mesma chave-de-leitura: quer dizer que ele foi franciscano. No século XV apareceram algumas breves representações que mostravam o santo com um hábito cinza, dos penitentes ou mendicantes; o corte tonsurado do cabelo tem o mesmo significado.

b) O livro (o atributo mais antigo) – Representa o Evangelho e a sabedoria de Antônio, primeiro mestre de Teologia da Ordem dos Frades Menores e doutor da Igreja. Lembra o pregador que arrebatava as multidões com as palavras do Evangelho. Por sua sabedoria bíblica, o Papa Gregório IX chamou-o de “Armário (Arca) do Testamento”.

c) O menino - O menino é visto em três tipos de representação:

1. Em cima do livro: em geral aparece sobre o livro aberto que o santo tem na mão, em gesto de quem abençoa, ou, usando um gesto de origem grega, com os dedos médio e indicador levantados, juntos, como a chamar a atenção para alguém que vai falar (no caso, o santo, pregando); pode representar a visão presenciada pelo Conde Tiso, em sua residência; o estar em cima do livro (Bíblia) evoca a característica de Frei Antônio como pregador do Verbo encarnado; o menino, segundo algumas fontes, nos primeiros tempos, não seria Jesus, mas as crianças, por quem o santo tinha enorme predileção; numa obra de El Greco, o menino (Jesus) aparece como brotando das páginas do livro, onde Antônio mostra a revelação do Verbo.

2. No colo do santo: em outras representações, o livro aparece de lado, e o menino Jesus está no colo de Antônio, numa atitude de extraordinária familiaridade, acariciando-lhe o rosto.

3. Sendo mostrado ao santo, pela Virgem Maria: Um quadro (reproduzido em alguns “santinhos”, mostra a Virgem apresentando o Filho à adoração de Antônio).

d) O lírio – O lírio é um símbolo-atributo que aparece nas representações artísticas após o século XV e se toma popularíssimo; tem dois significados: o mais antigo remete a Pádua; o lírio é a flor da estação na qual Antônio morreu; é a flor do campo, ornamental, perfumada,medicinal e frágil. O outro significado simbólico, posterior ao primeiro, refere-se à pureza, à castidade, à pobreza e ao vigor do testemunho de vida, na entrega do coração virginal a Deus. Há ainda um terceiro atributo, paralelo: a natureza, mostrada, pelos franciscanos, como sinal de Deus.

e) A cruz na mão – A cruz na mão (do século XVI) pode significar duas coisas: o espírito missionário do santo, ou, seu desejo de tomar-se um mártir da fé.

f) Os pés desencontrados - Se observarmos as imagens de Santo Antônio, veremos que seus pés não estão um ao lado do outro, mas um mais à frente do outro; trata-se de um indicativo de “em marcha”, “a caminho”, atitude que sempre caracterizou seu trabalho missionário.

g) A fisionomia adolescente - O rosto jovem, alegre e belo é consequência, como já vimos, daquela perfeição que a religiosidade popular passa à arte, relativamente aos santos e bem-aventurados; significa, também, a jovialidade do espírito do cristão.

h) O pão - Em certas obras de arte antigas (século XVI-XVII) vê-se o santo distribuindo o “pão dos pobres”; esse atributo é o mais recente; apareceu em Messina, na Sicília, em meados do século XIX, durante uma época de fome.

i) A chama - A chama de fogo que aparece em alguns ícones, especialmente orientais, simboliza o amor divino, o zelo e a paixão do santo por Jesus e seu Evangelho.

j) A nogueira - Esta é uma representação não muito conhecida; pouco antes de morrer, com falta de ar, Frei Antônio pediu que armassem sua cela no topo de uma nogueira frondosa, possivelmente nas propriedades do Conde Tiso. O santo já estava doente; falam em hidropisia e asma; há quem suspeite de obesidade (“adquirira certa corpulência…”) e diabetes; ali, além da altura (que proporcionava o ar fresco), o odor das resinas da árvore mantinha-o defendido dos mosquitos; pois mesmo ali vinha gente ouvir sua palavra. Uma pintura renascentista mostra o santo em cima da árvore, pregando ao povo, sentado, com a Bíblia na mão, como se estivesse numa cátedra, tendo, abaixo de si, São Boaventura, na época, o coordenador geral dos franciscanos; o estar na árvore é figura do desprender-se da vida terrena, já que o santo estava nos últimos dias de vida.

l) O terço – Para explicitar que Santo Antônio era um homem de oração, a iconografia do século XVI representou-o com um terço pendurado à cintura. O terço foi criado por São Domingos de Guzman (f 1221), utilizando antigos modelos orientais.

Há vários aspectos da vida, das pregações e dos milagres de Santo Antônio constantes de sua iconografia. O “sermão aos peixes”, em Rimini, o “coração do avarento dentro do cofre”, em Florença, “a mula ajoelhada diante do Santíssimo” em Rimini, fazem parte desse emocionante acervo, criado por mestres da pintura. A morte do santo, em Arcella, e lá fora as crianças fazendo o miraculoso anúncio, está magistralmente pintada numa obra de Murillo.

A icnografia leva-nos, como foi dito, a uma leitura analítica mais atenta de todos os símbolos e atributos que a devoção popular e oficial creditaram aos santos. Iconografia é para se ver e entender, independentemente de valores estéticos. Uma obra de arte, seja um quadro sofisticado ou uma rude representação popular, não é para ser achada bonita ou feia, mas para ser entendido o seu sentido.

No caso místico, as imagens de Deus e dos santos servem para criar aquela aproximação física que nossas carências reclamam, para um ajutório de memória, e para avivar a fé, relembrando as práticas e os sacrifícios daquele que está ali retratado.

E nós, hoje? Somos daqueles que entendemos que, pelo fato de possuirmos essa ou aquela imagem em nossa casa, já temos comunhão com quem está ali representado? Há pessoas que vão à igreja, oram diante das imagens, acendem velas e esquecem-se de reverenciar a Cristo, vivo e presente ali na Eucaristia. Somos desses?

Temos formação suficiente que nos dê uma exata noção entre santidade e divindade, imagem, representação, mediação, pessoa e divindade?

Extraído do livro “Santo Antônio, a realidade e o mito”, de Carmen Sílvia Machado Galvão e Antônio Mesquista Galvão, da Editora Vozes


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