São
Francisco e o Fogo
O fogo
restringiu-se a um elemento prosaico de nosso quotidiano. Que é? De onde vem?
Um palito de fósforo que se risca. A chave do fogão que se gira. Um leve toque
na tomada. Ei-lo: o fogo, domesticado, a seu dispor. No entanto, o “Fogo” é um
elemento nobre, constitutivo, fundamental – e final – do universo. Desprovidos
do moderno aparato tecnológico, os antigos alcançavam melhor percepção talvez
do caráter arcano, transcendental e arquetípico do Fogo. E com ele mantinham
respeitosa relação de medo, gratidão e veneração.
A partir
de uma característica singular de sua espiritualidade, que via nas coisas
materiais, não simplesmente uma profana opacidade, ou o signo de perigosa
idolatria, mas sim o reflexo do Criador e um caminho para a divindade, São
Francisco construiu uma significativa relação de admiração e identificação com
o Fogo, que pode ser destacada sob o ponto de vista factual, psicológico e
religioso.
Factualmente,
São Francisco tratava com o máximo respeito as manifestações empíricas do fogo.
Recusava-se a apagá-las. Mesmo quando lhe devoravam as vestes.
Psicologicamente, atribuía qualidades masculinas ao fogo, figuradas na chama
ascendente que se eleva e progride com alegre temeridade, e, quiçá, com certa
petulante inocência, de quem é inconsciente da força que tem e do temor que
inspira. “Irmão Fogo, sempre fui seu amigo, queira moderar-se ao queimar minhas
têmporas ...”
Mas é
sobretudo o caráter religioso, teofânico, do Fogo, como elemento simbolizante
da divindade, que no espírito franciscano convém salientar.
Na
Escritura, não só Deus habita e manifesta-se no meio do Fogo, como também envia
o seu Fogo para julgar e castigar, guiar, proteger e santificar. Mais. Ele, o
próprio Deus, como Fogo se define: “é um Fogo devorador” (Hb 12,29).
Se disse
Jesus: “Eu vim trazer Fogo à terra, e que mais quero a não ser que ele
arda?”(Lc 12, 29), em quem melhor se cumpriu este intento do Salvador senão no
Santo que soluçava pelos montes, devorado em sua alma ardente pelo lamento: “o
Amor não é amado”? Pois o Fogo é a representação da alma de São Francisco, que,
como um Serafim, abrasava-se no Fogo do amor de Deus.
Em cada
Missa nos é dada a oportunidade de juntar, no tempo que passa, nossa fraca e
impura voz à liturgia celeste dos espíritos abrasadores, que, com São Francisco
e todos os eleitos, no Hoje eterno, fazem ribombar os céus com o “Santo, Santo,
Santo”, descrito em Isaías 6.
Já para
os que com ele conviviam, São Francisco, estigmatizado e pobre, imolado qual
chama viva no Fogo penitencial, era uma lâmpada votiva do Santíssimo,
indicativo translúcido da Divina Presença.
O fogo
nosso de cada dia parece bem comportado. Vez por outra perpetra um acidente. Um
botijão de gás que explode. Um curto-circuito que incendeia. É uma advertência
talvez para nos lembrarmos do Fogo simbólico, desse Fogo eterno que sobre tudo
paira. Esse Fogo sempre incomoda. Recalcitra. Surpreende. Não se deixa dominar
pelos pruridos da nossa racionalidade. O Deus que é um Fogo devorador recusa
absorver-se na tranquilidade suposta da nossa existência repetitiva e ameaça a
inconsciência moral do pecador.
Não se
descurou na vida de São Francisco o papel do Fogo como manifestação da
santidade: eis o incêndio que iluminou o Alverne na recepção dos estigmas; ou o
clarão que se elevou por ocasião do místico repasto de São Francisco e Santa
Clara em Santa Maria dos Anjos, assombrando os circunstantes; ou como revelação
das consciências: o carro de Fogo que iluminou mutuamente os irmãos na cabana
em Rivotorto; ou como instrumento de juízo: o ordálio proposto no Egito. Nem
São Francisco, nem a Escritura, nos pouparam do anúncio do Fogo da Geena, que
engole na morte segunda os que não fazem penitência.
Pedagogia
ultrapassada? Ou antes necessária caridade? Sobretudo neste tempo em que a Fé
se espraia no relativismo avassalador de uma indiferença religiosa, em que
deuses, igrejas e éticas se confundem. Nestes dias, “que são os últimos” (Hb
1,2), antigas certezas se desmancham, e vêm morrer na praia morna, na salsugem
sem verdade de uma vida inconsequente, em que perdeu-se a percepção das
qualidades sobrenaturais das coisas quotidianas.
Tudo no
Fogo se origina. Mesmo os átomos que compõem nosso corpo arderam inicialmente
no seio de uma estrela distante. E tudo ao Fogo se destina. “Os céus e a terra
de agora estão reservados para o Fogo”. Ao irromper na História tal Fogo
espiritual, escatológico, “os céus passarão com grande estrondo, e os
elementos, ardendo, se desfarão, e a terra e as obras que nela há, serão
descobertas”(cf. 2 Pd 3, 7-12). Dies irae, dies calamitatis et miseriae, dum
veneris judicare saeculum per ignem. Tomás de Celano cantou a glória
apocalíptica desse Fogo inevitável. Dele nada nem ninguém se subtrai:
“todos serão salgados pelo Fogo”, disse Jesus (Mc 9, 49).Trata-se de um Fogo
simbólico, transcendente, do qual o fogo material é simbolizante. Esse mesmo
Fogo eterno é felicidade e miséria, inferno e céu, a uns acomete e destrói, a
outros purifica e redime (cf. 1 Cor 3, 13). Por ser Fogo simbólico não é menos
real. É mais. Mais poderoso. E mais abrasa. Como no episódio da cortesã que o
induzia ao pecado e a quem o Santo, despindo-se, convidou a partilhar do
incandescente leito da Graça (cf. Fioretti, 24), tem o Fogo do Espírito o poder
de transformar o ardor da paixão carnal em fervor espiritual. Ao contrário do
fogo material, do fogo dos sentidos e do fogo do inferno, o Fogo do Espírito
brilha e embeleza. Aos Santos não entenebrece.
Escolhamos
desde já de que modo nos abrasaremos por toda a eternidade! Não é questão despicienda.
É a grande escolha da vida. Há o lago de fogo e enxofre para o qual se
precipita o pecador impenitente. Mas quão maior, mais doce e mais formoso, é o
ardente abismo do amor do Pai, para o qual o Fogo do Espírito, iluminando as
trevas da nossa alma, com o exemplo dos Santos, ao caloroso regaço do Filho,
nos compele.
Fonte da imagem: www.revistafenix.pro.br
Edmilson
Soares dos Anjos
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