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Santa Clara idosa, pobre, doente: do Mosteiro de São Damião em Assis à Casa de São Francisco em São Paulo

 Santa Clara idosa, pobre, doente: do Mosteiro de São Damião em Assis à Casa de São Francisco em São Paulo  

Santa Clara nasceu em 1193/1194 no nobre palácio de sua rica família Ofredúcio, em Assis, e lá se exercitou como jovem penitente de 1206 a 1212, quando, após alguns meses entre monjas beneditinas, passou a viver no Mosteiro que veio a fundar com São Francisco junto à Igreja de São Damião, embrião da II Ordem, ramo feminino da Família Franciscana Em São Damião, desde então habitou Santa Clara e ali faleceu em 11 de agosto de 1253, ao redor dos sessenta anos, um dia depois de ter em mãos — e ardorosamente beijá-la — a Bula do Papa Inocêncio IV, datada de 09 de agosto de 1253, com a aprovação do “Privilégio da Pobreza”, pelo qual tanto lutara desde o início de sua caminhada religiosa, permitindo que sua Ordem vivesse, de forma canonicamente reconhecida, sem propriedade e rendas. 

Privilégio da Pobreza 

Aos olhos do mundo, a pobreza está longe de ser um “privilégio”, é antes uma maldição e uma desgraça que se deve evitar e combater. Ninguém quer, por ele mesmo, esse “Privilégio de Pobreza”. Procura-se a riqueza. Reza-se pela aquisição de bens. No entanto, embora no Antigo Testamento seja ressaltada a prosperidade de patriarcas e reis como bênção de Deus, os profetas não cessavam de condenar fortemente a acumulação de riqueza em detrimento dos pobres. Deus ama os pobres e estatui uma legislação ímpar no mundo antigo em favor dos pobres a exigência de justiça social e compaixão com os necessitados é marca da identidade do Deus de Israel. O Canto do Magnificat revela, em caráter de antevisão profética, escatológica, de forma taxativa, radical e revolucionária a política socioeconômica de Deus: “Cumulou de bens os famintos, despediu os ricos sem nada” (Lc 1, 53).  

Em contraposição às Bem-aventuranças aos pobres, aos famintos, aos que neste mundo choram, Jesus adverte com firmeza: “Ai de vós, ricos! ... Ai de vós que estais saciados!(Lc 6, 20-24).  

Jesus desmascarou a riqueza como “dinheiro da iniquidade” (Lc 16, 9), que deveria ser utilizado para partilha, e pelo menos assim angariar amigos — e principalmente o Amigo por excelência — que nos haverão de receber nas tendas eternas. A nota v da Bíblia de Jerusalém explicita: “O dinheiro é chamado “da iniquidade” não só porque aquele que o possui o adquiriu mal, mas ainda, de maneira mais geral, porque na origem de quase todas as fortunas há alguma desonestidade”. É a denúncia evangélica da “acumulação primitiva”, que o pensamento marxista sistematizará como base do capital explorador.    

Na encarnação, Jesus assume a pobreza, a humilhação, o sofrimento do Servo do Senhor, anunciado pelo profeta Isaías, instrumento divino ´para redenção dos pecados e salvação do mundo. No Evangelho, Jesus Cristo revela sua identificação divina com os pobres, a ´ponto de assumir em si e para si o atendimento ou recusa de atendimento à carência da criatura necessitada. É o destacado critério do Juízo Final. “Tive fome e não me destes de comer ...Tudo que fizerdes a um destes pequeninos a mim o tendes feito” (Mt 25).  

O convite de Jesus ao jovem rico Se queres ser perfeito, vai, vende tudo que tens, distribui aos pobres e terás um tesouro nos céus, depois, vem e segue-me” (Lc 18, 22; Mt 19, 21) foi assumido por Francisco e Clara como base fundamental de caminhada espiritual. Assim como Francisco, também Clara de tudo se desfez. Ao adentrar São Damião, Clara levou a leilão toda a sua herança, descartou inclusive maior lance dado por parentes, que buscavam preservar o patrimônio familiar, mas distribuiu tudo aos pobres.  

Para São Francisco e Santa Clara, atender à necessidade dos pobres, que sempre teremos entre nós no século presente, é atender ao próprio Cristo. Enxugar a lágrima do pobre é enxugar a lágrima de Cristo. É tarefa irrecusável e oportunidade áurea de santificação. Vale lembrar o pensamento de Pascal: “Até o fim do mundo há de durar a agonia de Jesus; até lá não podemos dormir”. 

Não somente dar aos pobres, mas ser pobre  

São Francisco e Santa Clara demandavam o “Privilégio da Pobreza” aspirando partilhar como pobres a experiência de viver com Cristo e como o Cristo encarnado — o mais pobre dos filhos dos homens. Viver com o Crucificado, e como o Crucificado, alegres na esperança, luz em meio às trevas, entre os crucificados da história.  Reconhecendo Cristo no pobre, de variada pobreza, valorizavam os pobres em Cristo e a pobreza mesmo segundo Cristo como forma de vida privilegiada, caminho privilegiado para a plenitude. 

Os dois santos fundadores da Família Franciscana eram iluminados pela alegria escatológica do Ressuscitado, cujo penhor, como crucificados em Cristo, já desfrutavam na terra: a cada jornada estendiam as mãos para receber e partilhar o pão nosso de cada dia, prosseguiam com fé na esperança da providência de Deus e com a certeza amorosa de que as tribulações do tempo presente, vividas com Cristo, “são leves em relação ao peso eterno de glória que elas nos preparam até o excesso (2Cor 4, 17).        

Apoios para prática da pobreza 

Pelo “Privilégio da Pobreza”, as “Damas Pobres de São Damião”, primitivo nome das Clarissas, abdicavam da posse de patrimônio e rendas, mas apoiavam-se em alguns elementos que patrocinavam sua forma de vida. Dispunham de uma casa: Igreja e Convento; viviam em comunidade, celebrando quotidianamente a fé comum note-se que em São Damião moravam inicialmente mãe, irmãs, parentes e domésticas do antigo palácio Ofredúcio; Santa Clara e as irmãs trabalhavam na pequena horta ou confeccionando toalhas e panos litúrgicos para doação ou atendendo aqueles que as procuravam para intercessão, aconselhamento, partilha de vida, alívio de angústias várias, e que se tornavam sensíveis certamente ao contato de auxiliares  das religiosas — a princípio, frades que alojavam-se em São Damião e saiam para angariar doações; depois, irmãs serventes ou benfeitores que coletavam ofertas, recebidas mesmo em dinheiro para o Mosteiro; e, sobretudo, na doença, na velhice, no processo de morrer, no sepultamento, as irmãs dispensavam umas às outras, além das orações e celebrações, companheirismo, cuidadosa assistência, solícita caridade, proporcionando saudável perspectiva de ajuda mútua e tranquilidade futura. 

Dessa comunidade de fé e vida beneficiaram-se Santa Clara e São Francisco, pois na debilidade de suas longas doenças, contavam com a presença atuante de irmãos e irmãs. 

Usus pauper 

Santa Clara e São Francisco são heróis da fé, que como farol e luzeiro indicam ainda hoje como exercitar o carisma da penitência e cultivar o “Privilégio da Pobreza”, também para os leigos, em meio às obrigações do século, palmilhando dia a dia “nosso claustro que é o mundo” ...vivendo segundo o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo” e “passando do Evangelho à vida e da vida ao Evangelho” 

Podemos adaptar o usus pauper dos bens deste mundo, conforme a situação de nosso estado de vida: através do desapego de todas as coisas que debaixo do céu existem” (Oração Absorbeat); evitando o apetite insaciável do consumismo e a acumulação: – “abri, Senhor, estas minhas mãos que para tudo guardar se fecham”; pela promoção da solidariedade e da partilha – dedicando o tempo e parte substancial de nosso orçamento para os pobres e para esta casa do Pobre Jesus, a Igreja das Chagas, bela representação da glória do céu na terra, que foi confiada aos nossos cuidados; incrementando o uso ecológico dos bens da terra, em memória do respeito à criação de Deus e à fraternidade universal de todas as criaturas, tão querida por São Francisco. 

Quiçá deparemos com desafios que a Regra de vida de Santa Clara e São Francisco minoraram para Ordem I e II porque vivemos particularmente em casas diversas; não nos reunimos quotidianamente em comunidade; nem temos auxiliares que coletem ajuda; trabalhamos em empreendimentos não religiosos; e sobretudo na doença, na velhice e no processo de morrer muitos irmãs e irmãos franciscanos seculares que não possuem família ou se encontram distanciados de parentes, terminam enfrentando as vicissitudes finais de uma existência por vezes outrora tão dedicada à Ordem—  com insuficiente acompanhamento.  

Neste sentido, com Santa Clara, pobre, longamente doente e, ao fim, já idosa, e com São Francisco debilitado pela enfermidade, aprendemos que ambos, mormente nas tribulações finais da vida, foram acolhidos com digno trato pelos irmãos de suas respectivas Ordens. Assim, tanto é pertinente salientar na Ordem Franciscana Secular a singular importância do SEI - Serviço de Enfermos e Idosos, como também é pertinente na Fraternidade das Chagas recobrar, tão logo seja possível, o sonho interrompido da Casa de São Francisco de Assis.  

Edmilson Soares dos Anjos  




Imagem barroca de Santa Clara de Assis, de barro, dourado e policromado,  medindo 60 cm de altura, com báculo de abadessa e ostensório com o qual repeliu os invasores sarracenos. Localizada no Altar da Imaculada, transepto da Igreja das Chagas do Seráphico Pai São Francisco em São Paulo.  Santa Clara que tanto amara a pobreza de Cristo, apresenta-se revestida de ouro asseverando que as tribulações da vida presente, vividas com Cristo, acarretam no céu eterno peso de glória, até o excesso (2 Cor 4,17)   

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