As agruras de um velho demônio
Um velho demônio, cansado de “percorrer a terra e rodear por ela” (Jó, 1,7), deu por si no Largo São Francisco. Veste puída, calçados rotos, acostou-se na graciosa murada de acesso à Igreja das Chagas e pôs-se a pensar sobre a vacuidade de sua própria existência. Que perambular desatinado e informe, sem resultado e sem fim! Não cumpriria, decerto, com mais facilidade e melhor proveito seu andarilho destino, se, postado num ponto do espaço, dali observasse as vicissitudes do tempo, naquele único lugar?
Assim pensando, reparava nos transeuntes, sempre apressados, ora para a direita, ora para a esquerda, e em todos percebia que jamais haveriam de reter, ou mesmo alcançar, o que tão afanosamente procuravam. Ai que tal engano também lhe houvera!
Via jovens, depois adultos, mais tarde idosos, desaparecerem, sem deixar traço, e compenetrou-se da inevitável finitude que acometia todas as criaturas terrestres. Constatava que, ao contrário de si, cuja forma persistia no decorrer dos tempos de longa duração, os seres humanos pereciam neste mundo. Mas observou que se lhe aguçava no íntimo um desconforto, um empecimento na alma, ao atinar que, assim como os seres humanos estavam presos à fatalidade da morte, também ele, velho demônio, e seus congêneres estavam presos à fatalidade da vida. Com temor e tremor compreendia-se no verso que Dante proferira logo à entrada do primeiro círculo do calabouço infernal: “Questi non hanno speranza di morte’.
Apurando com percuciência seu atreito olhar, pôde conhecer de grandes nomes que pelo histórico Largo sucederam.
Viu o poeta que “sonhou e amou na vida” — uma vida esmaecida e curta; e o ferido vate que lançou em condoreiro brado a angustiada prece que perpassa o coração de todo vivente: “Deus, ó Deus, onde estás que não respondes? Em que mundo, em que estrela tu te escondes, embuçado nos céus?”.
E atentou, ademais, no Brigadeiro famoso, presidente da Província, que professara na Ordem Terceira, às mãos de dois Bispos, e voltava anos depois, à frente de notável concurso de povo, já mudo, porém, em seu caixão, para ser sepultado no Jazigo da Igreja das Chagas do Seráfico Pai. E entre as litanias, discursos e aclamações, auscultava no embalsamado corpo os pungentes suspiros de angustiada dor que a insuficiência renal lhe arrancara na hora extrema. E na esposa, marquesa, uma vez garrida, discernia tão somente a inspiração de Pais-Nossos e Ave-Marias aos pobres moços da Faculdade, aos quais, caridosa, auxiliava, como rica e velha tia.
Considerava o terror dos desgraçados escravos que por ali passavam, arrastados, para justiçamento no Pelourinho. E o lúgubre desfilar das peças indígenas, apresadas por bandeirantes tremendos. E as valentes tribos que, em sangrenta investida, forçavam a paliçada, tentando derruir a nascente e perigosa vila.
E antes, no que, em longínquo futuro, haveria de ser o Largo, já o velho demônio acompanhava o transitar aflito dos animais famintos; aterrava-se com os medonhos embates dos dinossauros imensos que se dilaceravam aos berros repetidamente; assombrava-se com os pequenos insetos que replicavam tais atrocidades, em diminuto tamanho, é certo, mas com igual ferocidade e incalculável profusão. E dantes, muito dantes ainda, aturdia-se com o entrechoque dos elementos, terra, fogo, ar e água, em violenta revolta e mútua destruição.
Ai de quanto sofrimento e tristeza o velho demônio se apercebia! Parecia-lhe que um “capelão do diabo”, como propusera Darwin, atendo-se simplesmente ao Largo, poderia escrever “um livro e tanto ... sobre os trabalhos desastrados, esbanjadores, ineficientes e terrivelmente cruéis da natureza” — e da história.
Enfastiado de pena, repassado de angústia, o velho demônio mergulhava no escuro abismo fundamental onde confluem misteriosamente o ser e o nada. Um misericordioso sono, porém, o adormeceu. Voltando num sonho ao princípio de si, viu-se como um dos dourados putti que acolitavam o Altíssimo no azulado Empíreo. Mas notou que, desde o primeiro instante do seu ser, trouxera no peito, cravada, a pergunta farpante, nunca respondida, e pela qual aderira à revolta primordial da criatura contra o Criador, da qual lhe resultara tão infausto destino: “Por que existe alguma coisa em vez do nada?”. E no tresvario do sonho, ocorreu ao velho demônio que tal pergunta impunha uma certeza: a vida não porta em si a evidência do bem. Pois que se assim fora, tal premente questão jamais se colocaria. Não é a vida um bocado doce, leve, aprazível, é antes um cálice de beberagem frequentemente insulsa, da qual cada existente haverá de sorver, forçosamente, cedo ou tarde, a mais amarga lia. Desprovido de esperança e fé, infenso à sabedoria e ao amor de Deus, a vida apresentava-se ao velho demônio como tarefa sem sentido, um transitar sem fim num labirinto sem saída.
Eis que o Grande Demônio, circulando também pelo Largo, deparou com seu adormecido serviçal. Despertou-o com furor:
— Quê? Tu dormes? Como os discípulos do Outro na mais severa hora? A mim o açoite! A mim o látego! Castigar-te-ei rudemente.
Buscava explicar-se o velho demônio ao seu irado senhor.
— Ah! — disse-lhe sarcástico, o Grande Demônio —, bem sei, ao invés de perambular pelas coordenadas do espaço, tentavas percorrer, descansado, as coordenadas do tempo. Impudente! Verás o que te faço.
E assentando-lhe a pesada mão, constringiu-lhe o corpo numa garrafa e suspendeu-o a um poste, sentenciando:
— Segundo teu desejo, contemplarás o desenrolar do tempo, num mesmo lugar, para sempre, per omnia saecula saeculorum.
E foi-se.
Desde então, os rapazes, passando para a Faculdade, perguntavam:
— Que queres, velho demônio?
Como a Sibila de Cumas, ele dizia simplesmente:
— Quero morrer.
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