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“Renúncia” e “Morte” de São Francisco

 


Renúncia e Morte de São Francisco 

Entre a rica iconografia de quadros e imagens da Igreja das Chagas do Seráfico Pai São Francisco em São Paulo, destacam-se dois painéis, situados frente a frente junto ao Altar-mor, denominados por Frei Adalberto Ortmann, “Renúncia de São Francisco aos seus direitos de herdeiro” e “Morte de São Francisco” (1). Compostos em óleo sobre tela de linho, medem cada um 2,23 x 1,82 m, incluída a bela moldura dourada. Padecem data e autoria incerta, possivelmente foram pintados por José Patrício da Silva Manso na última década do século XVIII. Já muito oxidadas, praticamente indistinguíveis, as pinturas foram restauradas em 2014 pelo atelier Júlio Moraes.  


Descrição do quadro Renúncia  

Por volta de 1950, assim descrevia Frei Ortmann o quadro Renúncia 

“... vemos São Francisco ajoelhado perante Dom Guido, o bispo de Assis. Este vestido de batina e murça roxa, sentado em trono de dossel forrado de damasco vermelho. São Francisco, no momento de despir suas vestes interiores, guardando apenas o calção, na terra jogados o precioso vestuário de veludo, a espada de fidalgo, o chapéu e as botinas; observa-se no braço direito um cilício. No primeiro plano do quadro, à esquerda do bispo, avança enfurecido o pai de São Francisco, Pietro Bernardone, com trajes de gentil-homem, de cabelos compridos e alisados, com rica gorjeira de dois andares cobrindo o pescoço, calças ou meias brancas até os joelhos. Do fundo do outro lado aproximam-se seis clérigos, como em procissão de dois em dois, os primeiros deles trazendo o hábito, com que São Francisco há de vestir-se. O fundo do quadro é coberto de pesadas cortinas escuro-verdes”.  

Anotações 

Além do que apresenta Frei Ortmann sobre o quadro “Renúncia, anote-se que o Santo porta também um cilício na cintura; as vestimentas de Francisco e de seu pai assemelham-se ao uso de fidalgos portugueses do século XVIII; um rosto aparentemente feminino, em segundo plano, abaixo de uma borla pendente da cortina, bem pode ser a representação da mãe de São Francisco, Joana Bourlemont, dita Picá, tomando partido entre os clérigos, com semblante sério, mas plácido, ao contrário de seu iracundo e desafiador marido. Os clérigos e o pai de São Francisco não possuem barba, mas é no rosto liso em perfil do Santo que se acentua o contraste com a melhor perfeição da face com barba aparada do Bispo Guido. Quem sabe José Patrício tenha confiado esse perfil central (ao menos) a um discípulo que se lhe afigurava (e era) promissor ... 

Dois clérigos, ao lado direito do quadro (esquerdo de quem vê), algo distantes, pouco vívidos em fotografia reproduzida nas derradeiras páginas do livro de Frei Ortmann,  encontram-se atualmente ainda mais esmaecidos.  





Descrição do quadro “Morte 

Do painel que retrata a cena da morte do Santo, diz Frei Ortmann: 

“... o pintor representa um quarto desataviado, de paredes nuas, no primeiro plano São Francisco, deitado no chão, nu, apenas cingidos os rins, no momento de exalar sua alma — esta indicada por uma estrela que foge de sua boca. Um grupo de dezoito pessoas, quase todos de joelhos, rodeia São Francisco pelo lado atrás de seu corpo, deixando-o todo à vista do espectador. Treze frades, dois conhecíveis apenas pela tonsura, alguns segurando a vela de agonia, ou o crucifixo, ou o hábito do santo, ou ainda rezando em um livro as orações de agonia, aglomeram-se na região da cabeça da figura principal. Aos pés do santo, ajoelhada, Jacoba de Septemsoliis, segurando em suas mãos os pés chagados do agonizante. Diante dela, no chão, um feixe de velas e um vaso com fogo. Atrás de Jacoba os dois filhos dela, rapazes de quatorze e dezesseis anos, de pé, em trajes finos de veludo verde e vermelho, e mantéus de renda, olhando, em atitude de respeitosa curiosidade, para o moribundo, o primeiro apontando para ele com o dedo indicador da mão esquerda. Um forte clarão, de cor amarela, que o pintor não soube modelar, desce, por através do quarto para o santo. No centro do fundo, entre o estrado e a janela, mais dois frades, de pé, distanciados dos outros, estão de costas voltadas, numa posição pouco motivada, o primeiro lendo em um livro e o segundo observando, pela janela afora, na escuridão da noite, um outro clarão, que, em forma de cometa, sobe de um convento distante para o céu — evocando a lenda de um frade que, longe, do lugar, viu na hora da morte de São Francisco, sua alma subir ao céu”.  

Anotações  

Sobre a cena da Morte”, pode-se anotar que São Francisco agonizante, foi depositado, nu, a seu pedido, no chão — chão constituído por um piso de tábuas largas, similar ao assoalho da Igreja das Chagas. Os estigmas nas mãos e nos pés estão nítidos, a mão esquerda resguarda, porém, com doce pudor, a chaga do lado. 

No primeiro plano, segundo Frei Ortmann, junto a “um vaso com fogo”, “um feixe de velas”. São velas finas, parecidas com varetas de incenso, mas é visível o pavio. Na verdade, sentindo-se próximo da morte, São Francisco solicitou que sua amiga, Jacoba de Settesoli, fosse informada de seu estado, e lhe trouxesse um tecido escuro, cinzento, para confecção de seu hábito mortuário e uns bolinhos de amêndoas e mel ou açúcar, por nome mostaciolo, que ela lhe costumava preparar. Bem inspirada, antes mesmo de receber o aviso, a dama romana, a quem o Santo, para permitir sua entrada no claustro masculino, singularmente tratava como “Frei” Jacoba, já se apressara a caminho, trazendo o pano cinzento, velas e incenso, bem como os apetecidos docinhos de que o Santo tanto gostava. Desta forma, o vaso tampado em primeiro plano talvez não seja um braseiro, mas um vaso com incenso, ou, melhor, quem sabe, um vaso com bombons carinhosamente trazidos por uma mulher que quisera prover ao Pobre de Assis um gosto de humana doçura nos momentos finais de sua existência — “mas ele só comeu um pouquinho” (Legenda Perusina, 101).       

Várias feições de frades, — hoje — todos com barba, e o perfil de “Frei” Jacoba, impressionam pelo bom trabalho. O semblante dos filhos da dama romana, contudo, se distancia um tanto desse resultado. O rosto de São Francisco encontra-se bem delineado. “Um pouco oval”, barba não plenamente cerrada, orelhas pequenas, como descrevera seu primeiro biógrafo (para ampla descrição, cf. 1 Celano, Cap XXIX, 83).  Note-se que na fotografia reproduzida por volta dos anos 1950, nas páginas finais do livro de Frei Ortmann, de alguns frades, situados atrás daquele que segura o hábito, não se divisa barba. Dos três frades, ao lado do crucifixo, a fisionomia então visível, restou presentemente apenas perceptível  

Pouco acima da cabeça largamente tonsurada do Santo, que ainda está com os olhos abertos, no momento mesmo em que exala o último suspiro, um frade segura, como diz Frei Ortmann, “a vela de agonia” com pequena chama e um fio de fumaça que finamente se evola; enquanto outro frade — o mais próximo do Santo — com um livro às mãos, deixa ver aos espectadores  as páginas de um Salmo, bem identificado em seu derradeiro verso: “me expectant iusti donec retribuas mihi” (Sl 141, 8b; Vulgata)), Na Legenda Maior, Cap. 14, 5, São Boaventura recorda os comoventes versos deste Salmo que São Francisco rezou na hora extrema: “Lanço um grande brado ao Senhor, em alta voz imploro ao Senhor” (verso 1), e, juntando o resto de suas forças, clamou: “Tira-me desta prisão para que dê graças ao teu nome” (v. 8a), e profetizou em despedida com o verso final: Os justos virão rodear-me, quando me fizerdes este benefício” (v. 8b). 

No centro do quadro, ao fundo, aponta Frei Ortmann, um frade está “lendo um livro”. Qual livro? Trata-se de um códice do Evangelho de João, pois o agonizante pedira anteriormente que fosse lida a passagem sobre a última ceia, que assim inicia: “Antes do dia da festa da Páscoa, sabendo Jesus que era chegada a sua hora de passar deste mundo ao Pai ...”. (Jo 13, 1). No livro às mãos do frade pode ser identificado com clareza o cabeçalho desta Sequência e o primeiro verso em latim: “Ante diem festum Pascha ...”  (Vulgata) 

Ao meio do quadro, lado esquerdo, dispõe-se o leito vazio com pequenina cruz coroando a tábua da cabeceira; sobre o estrado, um terçodevoção incipiente à época, ainda não regulada, passando as contas, recitava-se Salmos, Padres-Nossos e Glórias, a Ave Maria estava sendo difundida, a Santa Maria será composta séculos depois; vê-se também o travesseiro, que São Luís e sua mãe, Branca de Castela, haveriam de herdar. A Primeira Biografia de Tomás de Celano conservou em informativa pergunta a notícia: “Quantas maravilhas Francisco realiza somente na França, aonde acorrem o rei e a rainha dos franceses e todos os grandes para beijar e venerar o travesseiro que São Francisco usara na enfermidade?” (1 Celano, 120). No que se refere ao forte clarão central, de cor amarela, mais ou menos acentuado em quadros atribuídos a José Patricio da Silva Manso, talvez seja apenas um recurso costumeiro, para obviar os tons escuros da obra e realçar a figura central do Santo, que o pintor tenha modelado simplesmente como quis modelar. 

Causam estranheza, pelo insólito, os crâneos nus que aparecem junto à lateral do leito: reportam-se aos “dois (frades) reconhecíveis apenas pela tonsura”, como aponta Frei Ortmann, com os treze distinguíveis, somam quinze frades observantes, mais Jácoba de Settesoli, seus dois filhos e São Francisco, ao centro, perfazem dezenove pessoas em meio círculo — a ser completado pelos espectadores que virão rodear o Santo de Assis na representação de sua hora final.   

Comentário sobre os quadros “Renúncia” e “Morte”     

Os dois quadros compõem um díptico, representando o percurso de desnudamento do Pobre de Assis.  

Na “Renúncia”, o jovem Francisco se despe dos apetrechos da persona mundana; abandona a família carnal, patriarcal, possessiva, pela fraternidade universal de todas as criaturas; abandona o direito civil pelo direito canônico; abandona a herança terrena pela herança celeste, o pai da terra pelo Pai do céu; abandona as armas, o comércio, o dinheiro, as vaidades todas, pelo humilde itinerário do Evangelho; abandona o sistema egoísta de apropriação que rege a malignidade no presente mundo, para dedicar-se ao serviço de Cristo, no despojamento, na partilha e na pobreza, sob o manto protetor da Igreja — que soube reconhecer seu divino chamado, primeiro, na pessoa do Bispo Guido; depois, na pessoa do próprio Papa e mesmo de Cardeais da Cúria. No quadro Morte, o pintor representa o percurso final do desnudamento de Francisco, o seu “Tudo está consumado”, o coroamento da meta que lhe fora divinamente proposta em seu ponto de partida: Seguir nu o Cristo nu. Nudus nudum Christum sequere é máxima oriunda das Cartas de São Jerônimo, tomada por moto pelo antigo espiritualismo franciscano para definir o caminho de santificação de Francisco. No quadro “Renúncia”, seguidos pelo olhar materno, dois frades entregam o hábito inicial, para o ingresso do filho de Joana Bourlemont na vida religiosa, como um testemunho de pertença à Igreja e um abrigo em seu desnudamento neste mundo. No quadro “Morte”, também um frade procede à entrega de um hábito, trazido pela amiga “Frei” Jacoba de Settesoli ao Santo agonizante, este é o hábito final, abrigo para o corpo, desnudo de sua própria existência física, para o abraço com a Irmã Morte, para o sepultamento, mas é, ademais, o selo da fidelidade a Jesus Crucificado no decorrer da sua vida penitencial, e, sobretudo, é a veste da vitória para as núpcias com o Cordeiro.  

Duas mulheres — Joana e Jacoba — compõem a presença feminina, compreensiva e materna, amiga e generosa, no início e no fim, em momentos cruciais da trajetória do Santo. Faltou representar uma terceira mulher: Clara, a companheira. Faltou nos quadros. Nem sempre a arte dá conta da vida. Pois Clara não faltou no processo do viver e do morrer com Cristo do Pobre de Assis. 

No imaginário da alma saindo da boca como uma estrela e subindo ao céu como um cometa, se dá o arremate sobrenatural conclusivo do trajeto terreno do Santo. De forma paralela, mais sublime talvez, no painel da Glorificação do forro do presbitério, também atribuído a José Patrício da Silva Manso, ao final de sua existência neste mundo, São Francisco é arrebatado ao céu num carro de fogo, à semelhança do profeta Elias.  

Considerações finais 

Frei Ortmann aponta deficiências técnicas, que, nestas duas pinturas, certamente se configuram. Na composição da narrativa, porém, elas se articulam e se complementam admiravelmente. Não são estáticas. Expressam movimentação, gestualidade, características de personalidade, e dinamismo histórico. Até pelo caráter algo tosco e um tanto ingênuo, elas se tornam mais impressionantes, mais impressivas. Elas não somente suportam críticas. Elas excedem. Em sua simplicidade e rusticidade, têm o condão de aproximar-se e dialogar com aquele que benevolamente as aprecia. São comunicativas e participativas. Pela feliz disposição em que se encontram, à altura do espectador, aquele que vê é chamado a integrar e completar o círculo da obra, cumprindo-se, destarte, a profecia final do Santo, conforme a expressão do Salmo de despedida: “os justos virão rodear-me”. Há, portanto, um delicado aliciamento do espectador. Quem vê passa a carregar o testemunho, não já do quadro, mas do fato. Podemos acender nossas velas no vaso — este sim — de fogo ali deitado.  São duas pinturas que exalam um ar de rudimento e singeleza decerto, mas, por isso mesmo, transmitem um toque genuíno de São Francisco de Assis, com cativante e perene atualidade.  

 

Edmilson Soares dos Anjos 

Medidas e material de composição: Wilma Saraiva Satto 

 

  1.  ORTMANN, Adalberto, Frei, “História da Antiga Capela da Ordem Terceira da Penitência de São Francisco de São Paulo, IPHAN, p. 99/100.          

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