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Carta sobre casamento com uma mulata

 Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência da Cidade de São Paulo 

Documento Histórico 

Aviso da Mesa 

Carta sobre casamento com uma mulata  

“Cópia da Carta que mandou a Mesa se escrevesse ao Irmão José Antônio da Silva por casar com uma mulata”.   

Senhor José Antônio da Silva 

Como consta que Vossa Mercê se acha contratado para Casar com pessoa, que não é terceira nesta Ordem da Penitência, nem o pode Ser, por esta Sou a dizer a Vossa Mercê que se desse Matrimônio tiver filhos, e eles morrerem sendo menores não procure dar-lhes sepultura nesta Ordem porque certamente se lhe não há de dar: e porque assim o tenha entendido me manda a Mesa, que lhe faça este aviso que lhe faço como Secretário, que sou desta Venerável Ordem 3ª da Penitência  desta Cidade de São Paulo aos 24 de Maio de 1771. De Vosmecê Irmão Venerador — O Padre Antônio José de São Francisco, para constar grafo este de minha Letra e Sinal. O Padre Antônio José de São Francisco que o escrevi. 

 

Livro II dos Termos, Atas de 1727 a 1792, p. 50v. 

OBS: Foi atualizada a ortografia. Manteve-se a pontuação e o emprego de maiúsculas. 

 

COMENTÁRIOS 

Não se encontra segregação racial na Regra franciscana e tão pouco no Evangelho. “Deus não faz acepção de pessoas” (At 10, 34). Bem o sabia a Igreja Primitiva. Os apóstolos foram enviados a ensinar e batizar “todas as nações” em “nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28,19). 

Normas 

No primeiro Estatuto Particular da Venerável Ordem Terceira Franciscana de São Paulo, ordenado pelo Ministro Provincial do Rio de Janeiro, Frei Agostinho da Conceição, em 16 de janeiro de 1686, consta o interdito à admissão de cristãos-novos, isto é, conversos do judaísmo, sempre suspeitos quanto à veracidade de sua fé: “Ordena-se que nenhum sujeito de qualquer qualidade que seja se admita a esta Santa ordem Sendo cristão novo, e em caso que por falta de informação, que se fará com estas diligências, for admitido algum se lhe negará a profissão sendo noviço, e se professo, como pode acontecer, ou apresentado por patente de outras Congregações, não entrará em Cargo nenhum da Mesa nem ofícios da Ordem”. (Primeiro Estatuto, Livro I de Termos, 1686 – 1778, p. 3). Esse impedimento foi citado e confirmado em um dos 144 itens, o item 102, do “Sumário das determinações quem tem havido nesta Congregação conducentes ao governo da Venerável Ordem Terceira de São Paulo, tiradas de assentos que se tem tomado desde o seu princípio até o presente ano de 1776 postas por alfabeto segundo a série dos anos que se colhe as que estão em seu vigor” (Livro I dos Termos, 1676 – 1778, p. 88-100). Outras situações de impedimento não estão contempladas nesse extenso documento. 

A exclusão de pessoas consideradas impuras, infiéis, ou de sangue supostamente “infecto”, em associações cristãs seculares de elite, como as Ordens Terceiras franciscanas e carmelitas, vicejava à sombra de ordenações régias contra judeus e cristãos-novos, mouros e seus descendentes, observadas na Igreja por força do Padroado, pelo qual as Coroas portuguesa e espanhola, formadas nas lutas pela Reconquista ibérica, procuravam firmar a unidade nacional com base na fé católica, e para isto gerenciavam o exercício da Religião em seus territórios, colônias, possessões, por meio de órgãos como o Conselho Ultramarino, a Mesa de Consciência e Ordens e as Juntas de Missões. 

As ordenações régias eram incorporadas e propagadas pela administração eclesiástica. Em 1707, o Primaz do Brasil, Arcebispo Dom Sebastião Monteiro da Vide (Monforte, Portugal, 19/03/1643 – Salvador, 17/09/1722) convocou um Sínodo para regularizar a vida religiosa na Colônia e promulgou seu resultado nas “Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia”, estabelecendo normas de separação entre o sagrado e o profano e disciplinando condições impeditivas para o acesso à profissão em ordens religiosas. Entre elas, além da exigência de vida exemplar, a comprovação de limpeza quanto a máculas pessoais de fé, como ser ou ter sido herege ou apóstata; máculas particulares provenientes de enfermidade deformante; máculas de geração e origem, como ser filho ilegítimo, ou descendente de hereges; máculas de sangue, como ter parte com nações impuras, judeus e mouros, além do interdito a negros e mulatos. Neste quesito, o item 4, do artigo 224, desta Lei Sinodal, determinava expressamente “para todas as Ordens” como ponto interrogatório impeditivo de admissão: “Se tem parte de nação Hebreia, ou de outra qualquer infecta, ou de Negro, ou Mulato” (VIDE, Edições do Senado Federal, vol. 79, Brasília, p. 93). 

Essas exclusões não se dirigiam diretamente aos índios, povo da terra, esperava-se que fossem arrebanhados para força de trabalho, catequizados    e assimilados para convivência. Em caso contrário, restava-lhes embrenhar-se mato adentro ou serem considerados inimigos e dizimados. Aliás, São Paulo nos séculos XVI, XVII e XVIII     era um povoado de forte traço indígena. Os jesuítas espanhóis das Missões guaranis viam com horror a aproximação dos beligerantes paulistas, aos quais alcunhavam “mamelucos de São Paulo”. O casamento e a prole com mulheres índias eram comuns e reconhecidos desde os tempos iniciais de João Ramalho e Bartira. 

Associações religiosas 

Certamente os negros, livres ou escravos, pretos ou pardos, embora sempre discriminados podiam formar irmandades próprias, como a do Rosário dos Homens Pretos ou a Irmandade de São Benedito, nas quais, é preciso lembrar, chegavam a ingressar brancos também, e para as quais membros da elite branca por vezes prestavam proteção e auxílio. No Brasil colonial e imperial fazer parte de uma associação religiosa era uma necessidade, não só para exercício comum da fé, mas para socialização, recurso e amparo nas vicissitudes da vida, na doença, na velhice, na morte, no sepultamento. 

As Ordens Terceiras franciscana e carmelita, onde se arregimentava uma elite senhorial branca, em uma sociedade escravista, que caracterizava os negros como inferiores, seguiam as normas exaradas pelas “Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia”, que muito bem serviam para nortear o exercício da fé, além de preservar a preponderância social, o convívio reservado e justificar a consciência. Na Resolução Capitular de 07 de novembro de 1742, os Terceiros franciscanos se reportam às normas estabelecidas por essa Lei Sinodal concernentes à separação entre o sagrado e o profano e ao devido respeito e preservação das alfaias e tradições sagradas (cf. Livro II de Termos, 1727 – 1792, p. 18/19).   

A “Carta sobre casamento com uma mulata”, de 24 de maio de 1771, não tratou da expulsão do Irmão José Antônio da Silva, que professara apenas quatro meses antes, em 17 de janeiro, mas afirmou que a mulata “não é terceira nesta Ordem, nem o pode Ser”, tampouco aos filhos desse casamento impuro, se lhes haveria de dar sepultura na Capela da Ordem.  

Com dificuldade um filho ilegítimo, como o Padre Diogo Antônio Feijó, ou um negro, a exemplo do grande músico Padre José Maurício Nunes Garcia, poderia alcançar a profissão sacerdotal. Se o notável pintor Jesuíno do Monte Carmelo conseguiu ser ordenado sacerdote, jamais pode ser Irmão da Ordem Terceira do Carmo, como desejava. Também Antônio Francisco Lisboa, o genial Aleijadinho, teve seu ingresso em Ordem Terceira franciscana de Minas, negado por óbice de cor, de ilegitimidade ou de enfermidade deformante 

Assim, as Ordens Terceiras tradicionais, em que professavam não só leigos, mas também um grande número de clérigos, considerando-se estreitamente ligadas aos religiosos, adotavam, com grande empenho e rigor, as normas excludentes de admissão ao ministério sacramentalmente ordenado, vigentes na Lei Sinodal, inclusive para o sepultamento em sua Capela, de que apenas os Irmãos professos e seus filhos menores, não alcançados por interdito, eram julgados dignos de se beneficiar. 

Note-se que a discriminação ocorria mesmo que o negro fosse livre. A norma impeditiva sinodal abatia-se sobre o negro e o mulato enquanto tais. Sequer se cogitaria o ingresso de escravos. A Ordem Terceira Franciscana de São Paulo não possuía escravos, mas a Igreja das Chagas do Seráphico Pai São Francisco foi construída por negros de ganho, vários deles, por certo, pertencentes a irmãos da Ordem que os alugavam para a execução da obra. Não fazia parte da formação dos Terceiros qualquer reflexão sobre a ilicitude da escravização dos negros e seus descendentes. Por estranho que pareça, a ilegitimidade desse procedimento não padecia qualquer contradição. 

Primeiros cristãos 

Os primeiros cristãos não propugnavam pela libertação dos escravos, o que teria configurado contestação frontal a Roma, cujo império apoiava-se no modo de produção escravista. O enorme contingente de escravos no mundo romano era formado pelos povos vencidos, de variada cor, conforme enunciado na Segunda Carta de Pedro: “aquele que é vencido por outro fica escravo de quem o venceu” (2 Pd 2, 19). Com isto, o apóstolo não pretendia justificar a escravidão, nem patrocinar o conceito de “guerra justa”. Na realidade, toda guerra costuma ser justa sob o ponto de vista do vencedor.  

Embora o anúncio de igualdade de todos os seres humanos esteja presente no Evangelho de Jesus Cristo, também os apóstolos não impunham aos conversos a libertação de seus escravos. Na pequena Carta a Filemon, Paulo solicita que o fugitivo Onésimo seja recebido “não mais como escravo, mas bem melhor do que como escravo, como um irmão amado ... segundo a carne e segundo o Senhor” (v. 16). Nessa solicitação, todavia, seja qual for o seu alcance, Paulo restringiu-se a “pedir por amor” (v. 9). Não se aventa a questão da justiça. Se Onésimo causara algum prejuízo ou furtara algo, seu senhor Filemon lhe retirava bem maior, a liberdade. 

Mais influente foi a tentativa de harmonizar a condição de escravo com o ser cristão, proposta na Primeira Carta aos Coríntios: “Permaneça cada um na condição em que se encontrava quando foi chamado. Eras escravo quando foste chamado? Não te preocupes com isto. Ao contrário, ainda que te pudesses tornar livre, procura antes tirar proveito da tua condição de escravo. Pois, aquele que era escravo quando chamado no Senhor, é um liberto do Senhor. Da mesma forma, aquele que era livre quando foi chamado, é um escravo de Cristo (1 Cor 7, 20-22). Tem-se aqui o equacionamento da condição de escravo pela via da espiritualização e da sublimação, ditado talvez pela esperança na proximidade da Parusia. “O tempo se faz curto” (1 Cor 7, 19). O que se deve evitar a todo custo é tornar-se “escravo dos homens” (1 Cor 7, 24). Isto contudo, para o apóstolo, significava participar dos costumes pecaminosos do mundo. Mais importante que a liberdade material, física, é a liberdade espiritual conferida pela santidade de vida. Como medida prática, Paulo exortava os escravos à obediência: “obedecei, com temor e tremor, em simplicidade de coração, a vossos senhores nesta vida” (Ef 6,5). E, para alcançar a glória de ter sido maltratado injustamente, Pedro apregoava a submissão e a resignação: “sujeitai-vos, com todo respeito, aos vossos senhores, não só aos bons e razoáveis, mas também aos perversos” (1 Pd 2, 18). 

A mácula indelével da negritude 

Por outro lado, Santo Tomás corroborava o ensino aristotélico de que “a escravidão é natural entre os homens”, pois como diz o Filósofo, “alguns são naturalmente escravos”. No embate entre civilizações europeias e africanas, os senhores brancos entendiam-se justificados na escravização dos negros pelo direito de conquista, ou pela aquisição de negros já escravizados por guerras tribais, que, afinal, o próprio tráfico negreiro incentivava, e pelo “fato” de que os negros eram escravos “por natureza”, e podiam, ademais, ser descaracterizados costumeiramente como “rudes e boçais”. 

A suposta escravidão natural dos negros imprimia à negritude, em seus variados tons, uma identidade e uma mácula indelével de cor, que a alforria ou o nascimento livre não lograva apagar. A mácula certamente não se encontrava na cor do negro ou do mulato, mas na mente do senhor branco que estampava na pele do outro a sua própria mentalidade discriminadora e interesseira, uma vez que era corrente a constatação ditada pelo interesse econômico de que “sem escravidão não há Brasil”. Como definira Aristóteles: “os escravos são máquinas animadas”, necessários, indispensáveis, tanto na antiguidade como numa economia pouco ou nada mecanizada como a existente no Brasil colonial. 

Restava às belas almas, como o Padre Antônio Vieira, lamentar os maus tratos sofridos pelos escravos e comparar o sofrimento dos negros escravizados aos padecimentos do Cristo Crucificado, acenando-lhes com o lucro da salvação eterna, com glória superior à dos brancos escravagistas. Inibia-se a revolta. Pacificava-se talvez de imediato. Mas não se constrói verdadeira e duradoura paz sobre a injustiça. 

Apoiada na Lei Sinodal, a “Carta sobre casamento com uma mulata” considera a cor negra como mácula em si, e constitui-se num registro da mentalidade que exercia e ajudava a manter a inferiorização e a discriminação religiosa, social, política e econômica dos negros e seus descendentes, nesno após trabalhosa libertação. 

Apesar de uma Resolução de Pombal ter extinguido em 1773 a distinção entre cristãos novos e velhos, matriz de perseguições e discriminações, os critérios impeditivos das “Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia” continuaram inscritos na mentalidade social e nas práticas religiosas tradicionais. E o Padroado português se fez mais invasivo com Pombal controlando as admissões ao noviciado e aos votos sacerdotais visando manter no Brasil colonial a equidade numérica entre reinóis e brasileiros no Clero Religioso. No Império, em 1855, foi impedida a profissão sacerdotal nas ordens religiosas, causando o estrangulamento e a quase extinção de franciscanos, beneditinos, carmelitas, sem falar dos jesuítas, há tempo expulsos. Para a vocação clerical, abria-se a porta apenas do clero diocesano secular, com a perspectiva de recepção de modesta côngrua, quando o sacerdote atingisse o posto de vigário de uma paróquia. As ordens femininas sofreram idêntica e até mais pesada pressão. 

Proclamada a República, que num dos primeiros atos decretou a separação entre Igreja e Estado, extinguiu-se o Padroado e aos poucos foi sendo combatida a discriminação legalizada. Mas o preconceito contra os negros ou pardos, assim como outros preconceitos similares, análogos e congêneres, persistiu no século XX e persiste ainda século XXI. 

Metánoia 

Desde o final do século XIX, a Ordem Terceira Francisca de São Paulo passou a admitir a profissão de negros, sendo um dos primeiros o querido pintor Graciliano Vicente Xavier. Foi uma virada histórica, pioneira. A penitência (metánoia: mudança de mentalidade), carisma da Ordem, deve evoluir em prol da abertura da Igreja e da sociedade para a inclusão da plena diversidade dos seres humanos; O Reino de Deus é  aberto “a todas as nações” (Mt 26, 19), e os preconceitos humanos devem ceder, pois como ensina o Apóstolo dos Gentios, após a Encarnação de Jesus, “não há mais judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, pois todos vós sois um só em Cristo Jesus” (Gl 3, 28). 

Sob o ponto de vista bíblico, segundo a natureza, todos os seres humanos provêm de Deus, pois são descendentes de “Adão, filho de Deus” (Lc 3, 38). Atingida pelo pecado, Deus não abandonou a humanidade. A bênção do Espírito Santo, prometida a Abraão, e derramada por Deus, graças às Chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo, se destina “a todas as famílias da Terra” (At 3, 25) e “a todos quantos o Senhor, nosso Deus, chamar” (At 22, 39). 

Ser “católica”, isto é, universal, é uma das qualidades essenciais (“notas”) da Igreja. A cada homem e mulher, em qualquer situação, se dirige a missão apostólica de convidar à redenção pelo sangue de Cristo e à incorporação ao Reino de Deus como filhos santos e eternos do Pai comum. Não foi um eunuco etíope, valido de Candace, rainha da Etiópia, um dos primeiros a ser integrado na Igreja cristã nascente? (cf. At 8, 36).  A jubilosa multidão dos redimidos congrega pessoas “de todas as nações, tribos, povos e línguas” (Ap 7, 9). Aquele, porém, que busca impedir a realização da existência, da identidade e vocação do outro, filia-se ao maligno, cujo infausto destino compartirá.   

A Carta de condenação sobre o “Casamento com uma mulata” e o cruel aviso de antecipada recusa à sepultura dos filhos menores provenientes desse casamento constitui expressão de um prologado pecado histórico. Eis que de novo (Lc 2, 7): “Não havia lugar para eles”. No coração. Trata-se de uma chaga infligida ao Corpo de Cristo pelos que com ele partilhavam o Pão, mas há de ser redimida no presente, pelo repúdio a qualquer preconceito e discriminação, pelo respeito à dignidade e aos direitos inalienáveis de toda pessoa humana e pelo incansável exercício de compreensão e misericórdia, sobretudo com pessoas em situação de fragilidade existencial e com grupos de menor poder de representação social, perseguidos e oprimidos pela instrumentalização da religião como meio de ascensão política, dominação e exclusão.    

Aristóteles estabeleceu em sentença lapidar: “O ser se diz de vários modos”. E, com efeito, há vários modos de dizer o ser. Cada modo diz o ser a seu modo. E o ser se diz em cada modo. E nenhum modo esgota o dizer do ser. Apenas a Revelação de Jesus Cristo Crucificado e Ressuscitado expressa plenamente o ser absoluto que é Deus: “Deus é amor” (1 Jo 4, 8). Fora do amor de Deus, universal, aberto, inclusivo, libertador, não há salvação. Religiões, igrejas, cultos e instituições excludentes não ajuntam com o Evangelho, dispersam. E desperdiçam o precioso sangue de Cristo derramado pela salvação do mundo inteiro (cf. 1 Jo 2,2). Com simplicidade e alegria, desapego e diálogo, o modo franciscano de dizer o ser de Deus valoriza o Espírito que atua na vida de cada criatura, por quem Jesus nasceu e viveu, morreu e ressuscitou. 

O critério do amor 

O mandamento do amor é critério fundamental para interpretação das Escrituras, é Regra vinculante perene de pertença ao Reino de Deus. Deus é zeloso e exige o arrependimento e a conversão dos seus filhos. Para que se tornem santos concede generosamente o perdão e a graça. “Sem a santidade ninguém verá a Deus” (Hb 1, 14). Em belíssima profissão de fé dizia Santo Irineu de Lyon: “A glória de Deus é o homem vivo, mas a glória do homem é a visão de Deus”. Quando na Parusia o Cristo Ressuscitado se manifestar, nós o veremos como ele é, e seremos semelhantes a ele em sua glória (cf. 1 Jo 3, 2).  Por amor, Deus quer que cada ser humano viva na eternidade feliz e cultive desde agora um espírito semelhante ao seu: “Sede misericordiosos, como vosso Pai é misericordioso”, proclamou Jesus (Lc 6, 36). A misericórdia é condição de acesso à glória futura, pois quem julga sem misericórdia, sem misericórdia será julgado. A misericórdia deve triunfar sobre o juízo (cf. Tg 2, 13). Infelizmente, a Carta sobre o “casamento com mulata” não se regeu pela misericórdia divina, submeteu-se a normas preconceituosas humanas, demasiado humanas, em sua desumanidade. 

Toda norma deve ser aberta, compreendida e ministrada sobre a rocha basilar da fé que é o coração misericordioso de Jesus. Ali onde uma norma aflige um ser humano a tal ponto que lhe tolhe a vida, a identidade, o sentido do viver, tal norma deve ser revisitada, pois “o sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado” (Mc 2, 27). E assim falava Jesus de um preceito divino, instituído para a celebração da vida, mas que, hipostasiado como um ídolo, transformara-se em instrumento de rígida padronização, discriminação, opressão e morte. 

Todas as normas injustas, assim como o uso injusto de normas justas, passarão um dia com o sistema deste mundo. E será então definitivamente instalado o Reino de Deus. Que venha logo esse dia em que toda a humanidade poderá invocar verdadeiramente a Deus em fraternidade, conforme a oração que Jesus ensinou: “Pai nosso”. 

Aprendendo com Francisco 

A atual Regra da Ordem Terceira Franciscana, hoje denominada Ordem Franciscana Secular, aprovada pelo Papa Paulo VI em 1978, ordena a superação de todo preconceito, discriminação e exclusão: “Assim como o Pai vê em cada ser humano os traços de seu Filho, Primogênito entre muitos irmãos, os franciscanos seculares acolham todos os homens com espírito humilde e benevolente, como um dom do Senhor” (§13). 

E mais. 

Quem ouve, como São Francisco, a voz do Verbo, sabe que “tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito” (Jo 1, 3). Assim compreendendo que todas as coisas procedem do Verbo e para ele convergirão (Cf. Cl 1, 10; Rm 8, 20-22), pode-se admirar a mais revolucionária percepção que o Santo de Assis viveu e proclamou: todos somos irmãos, integramos a Fraternidade Universal de todas as criaturas. Todos os seres da terra, sejam elementos da natureza, plantas, homens, mulheres, animais, fazemos parte desse grandioso projeto divino, tornado doloroso pelo pecado, mas, na esperança em Cristo, já resgatado e glorioso. Deus tudo arriscou, inclusive seu próprio Filho, “resplendor de sua glória e expressão de seu ser” (Hb 1, 3). Não se recolheu à certeira segurança do solipsismo. E rejeitou em sua obra a fastidiosa monotonia da mesmidade. A cada criatura, em sua diversidade, é dado refletir uma centelha da infinita perfeição de Deus. E todas as criaturas, em sua profusão e variedade de cor e som, figura e caráter, experiência e sentido, compõem a surpreendente policromia, polifonia e polissemia da multiforme criação de Deus”. 

Na “Carta sobre casamento com uma mulata”, os Irmãos cumpriram normas, legislativas, tradicionais, sociais, culturais, econômicas — desumanas todas, egoístas e preconceituosas, mas fracassaram no seguimento do Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo o exemplo de São Francisco de Assis que proclamava:   

“Louvado sejas meu Senhor com todas as tuas criaturas”. 

E nós? Somos capazes hoje de reconhecer o erro. Mas até quando continuaremos também fracassando?  

Edmilson Soares dos Anjos     





Cópia de Carta sobre casamento com uma mulata. 24 de maio de 1771. Livro dos Termos 1727 – 1792. Página 50v.Acervo VOT. 

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