Quadro de Santa Isabel da Hungria, óleo sobre tela, dimensões: 230 x 171 cm, atribuído a José Patricio da Silva Manso, fim do século XVIII. Igreja das Chagas do Seráphico Pai São Francisco em São Paulo. Acervo VOT.
A gastança de Santa Isabel da Hungria
A existência terrena de Santa Isabel da Hungria durou 24 anos, de 1207 a 1231. Foi descendente, sobrinha, tia e tia-avó, de santos e santas. Nasceu em meio da alta nobreza europeia de seu tempo. Descendia em linha direta do Imperador Carlos Magno. Foi Princesa da Hungria. No xadrez geopolítico da época, a Hungria era peça crucial nas relações entre o Oriente e o Ocidente, bem como entre o norte e o sul da Europa. Por casamento, tornou-se Condessa da Turíngia, soberana de um dos feudos mais ricos e poderosos do Sacro Império Romano-Germânico.
Mas Santa Isabel da Hungria era radical na gastança ...
A gastança
Ela “gastou”, diz o Papa Francisco, “não só os seus bens, mas também a sua vida a favor dos últimos, dos leprosos, dos doentes, até o ponto de tratar deles pessoalmente e carrega-los às costas” (1). Note-se que nos “seus bens” se incluíam os recursos do Estado, provenientes de tributos, impostos e taxas, que, como governante, lhe incumbia administrar e gerir.
Isabel comovia-se com a miséria do povo. Fazia construir albergues, e mesmo junto ao Castelo de Wartburg, central do Condado, na capital Eisenach, ergueu orfanato e hospital. Logo, comenta o biógrafo, Frei Fernando Port, OFM, “a enfermidade, a fome e a certeza de se verem aliviados vertia continuamente (para a proximidade do Castelo) verdadeira caravana de pobres. Isabel empregava em benefício deles: dinheiro, víveres, vasos preciosos, joias pessoais, inclusive o leito de prata em que fora trazida da Hungria” (2), aos quatro anos de idade, para o seu noivado na Turíngia. Distribuía também instrumentos de trabalho.
Por ocasião de uma fome geral, enquanto o Conde Luís, seu esposo, encontrava-se longe em campanha militar, os críticos da Santa protestavam que “todo o dinheiro constante nas arcas do Condado tinha ido parar nas mãos dos pobres” (3). A Condessa determinou que “todas as rendas do patrimônio pessoal do Conde fossem invertidas em alívio dos pobres que a fome deixava sem refúgio”, e enfrentando a oposição dos oficiais, ordenou que suas disposições fossem seguidas à risca (4). Os ressentidos apregoavam: “Não restou no Castelo nem joias nem qualquer outro objeto de algum valor, pois a Condessa Isabel havia vendido tudo e repartido entre os pobres” (5)
Aos detratores, que reclamavam da “insensata prodigalidade” e da “exagerada” gastança de sua esposa, o bom Conde retrucava: “Deixai-a ... Contanto que me conserve o Castelo ...” (cf. 6).
Isabel recusava-se a usufruir de bens adquiridos pelo que reputava impostos injustos ou exploração do trabalho do povo pobre. Seu esposo, titular do Condado, mostrava-se compreensivo com tal preocupação.
Sobre o milagre das rosas, cumpre notar que, dado o caráter compassivo do Conde Luís, a pergunta “Que trazes?” não haveria de ser inquisitorial ou desconfiada. Expressava a preocupação de ver sua esposa, arqueada, portando um grande volume, coberto pelo manto. Eram rosas ... Rosas vermelhas e brancas, das quais o esposo guardou uma para si. Com distinta conotação, pelas características d’El Rei Dom Diniz, o milagre das rosas repetiu-se com Santa Isabel Rainha de Portugal, de quem Santa Isabel da Hungria era tia-avó.
Queira Deus, se repita também conosco. Exalemos o perfume da generosidade.
O despojamento
O Conde Luís não só corroborava a caridade da esposa, mas lhe emulava a santidade. Certa vez, avisado de que Isabel acolhera um leproso no próprio leito conjugal, dirigiu-se algo inquieto ao quarto. E, de fato, lá flagrou o leproso, que se lhe afigurou, porém, como o Cristo Crucificado. Tomado de comoção, disse: “Oh, Isabel, minha amada irmã, em boa hora concedas meu leito a tais hóspedes quantas vezes quiseres, eu te agradeço muito; não consintas que ninguém se oponha ao exercício de tua vontade” (7). Provava assim da alegria de sua santa esposa, que em seus trabalhos de caridade costumava dizer: “Que felicidade poder deitar e acomodar na cama o Senhor” (8).
Santa Isabel vestia-se pobremente, com roupas escuras e cinzentas. Preparava-se para o futuro, uma vez que profetizava, dizendo: “Assim andarei quando for pobre e estiver na miséria, por amor de Deus” (9). Desde os 16 anos, com o beneplácito do esposo, agregara-se à Ordem Terceira dos Penitentes, procurando harmonizar sua vida com a Regra (Memoriale Propositi, de 1221) e a tradição devocional, sob direção espiritual, a princípio, de frades franciscanos, e posteriormente de Mestre Conrado, sacerdote indicado pelo Papa Honório III.
Desde 1213, quando tinha apenas seis anos, já há dois anos morando na corte da Turíngia, Isabel perdera sua mão, a Rainha Gertrudes, assassinada numa revolta popular. Por ocasião de uma visita de cavaleiros, enviados por seu pai, Rei André da Hungria, para colher notícias de sua amada filha, o Conde Luís preocupou-se com a vestimenta da esposa. Explicou que queria apresentá-la bem vestida e bela. Isabel tranquilizou-o. Abertas as portas do salão nobre do Castelo, Isabel surgiu com esplêndida aparência, deixando atônitos todos os presentes. “Trajava um magnífico vestido de seda e um belíssimo manto de veludo azul, bordado com requintadas pérolas”. Comenta o biógrafo: “era de tal harmonia (a vestimenta) que nem a rainha da França poderia apresentar-se tão bem e ricamente adornada” (10). Admirou-se vivamente o Conde. Tratava-se de um favor divino, revelou Isabel. Eis que o Senhor zela pela boa fama de seus santos e pela harmonia conjugal dos piedosos esposos. Em memória deste episódio milagroso, a iconografia apresenta por vezes Santa Isabel da Hungria belamente vestida e regiamente ornada.
Na verdade, a Isabel doía todo luxo, toda vaidade. Para agonia da mãe do Conde Luís e de seus parentes, à frente do Cristo Crucificado, na Igreja, Isabel afastou a coroa de Condessa e lançou-se em público ao chão. Acremente censurada, respondeu: “Na minha presença, está o misericordiosíssimo Jesus, meu Rei, coroado de agudíssimos espinhos. Como quereis que eu, miserável criatura, permaneça com minha coroa de ouro, pérolas e diamantes? Não seria minha coroa um escárnio da sua?” (11).
Ansiava por ser desprezada e humilhada como Jesus Crucificado: “Não há coisa que alegraria mais o íntimo da minha alma, do que me ver tratada nem mais nem menos do que uma leprosa ordinária ... “(12).
Aproximavam-se os dias em que esse desejo penitencial seria atendido ...
O sacrifício
“O seu matrimônio foi profundamente feliz”, assinala o Papa Bento XVI (13). A partir do noivado, em 1211, Isabel, com quatro anos, e Luís, com onze, chamavam-se “Irmão” e “Irmã”. Casados em 1221, por seis anos, amaram-se. Isabel amou e foi amada. O casal teve três filhos.
No entanto, em meados de 1227, ao descobrir que seu esposo estava empenhado em partir para Jerusalém, em uma Cruzada, Isabel desmaiou. Tomando-a nos braços, e reanimando-a, Luís lhe disse: “Faço isto por amor a Jesus Cristo .... Dá-me a permissão para marchar, porque é um voto que fiz a Deus”. Recobrando-se, suspirou Isabel: “A graça de Deus seja contigo ... Faço o sacrifício de mim e de ti ... Parte, pois, em nome de Deus” (14).
Pressentia que aquilo que de mais precioso tinha, o amor do seu coração, o seu Isaac, lhe seria levado.
Poucos meses depois, recebia a notícia de que seu esposo, com apenas 27 anos, morrera de peste, em Otranto, ainda no sul da Itália. A aflição de Isabel foi imensa. Com voz embargada, exclamava: “Ah, meu Deus, Senhor, meu Deus”! Morreu para mim o mundo todo! O mundo inteiro morreu para mim com todas as suas delícias!”. “E levantando-se transtornada e fora de si, pôs-se a correr pelas galerias e salões do Castelo, clamando com acento desolador: “Morreu! Morreu! Morreu!”. Entre lágrimas e suspiros, dizia: “Perdi tudo, tudo! Irmão querido, amado do meu coração, bom e piedoso esposo meu, tu morreste e me deixaste na miséria. Que farei sem ti? Eu, pobre viúva abandonada, infeliz e desditosa mulher ... Deus Todo-poderoso, amparo das viúvas e dos órfãos, consola-me! Oh, meu Deus! Socorre esta mulher tão infortunada e fraca! Meu Deus, desde agora, tende piedade de mim!” (15).
Isabel compreendia que uma tormenta assombrosa de pronto lhe adviria.
Rumo à perfeita alegria
Com a morte precoce do amado esposo, sendo acoimada de “santarrona manirrota”, e acusada de ser prejudicial ao Estado, uma vez que dilapidava o erário público, conjugando-se, os inimigos e os irmãos do falecido Conde, tomaram o poder. Isabel foi vítima de um golpe palaciano, expulsa do Castelo e deserdada de todos os bens. Súbita e inesperadamente, encontrou-se desamparada e sem teto, num entardecer de inverno, com seus três filhos, Hermann de 4 anos, Sofia e Gertrudes, ainda menores, além de Guta e Isentrude, mulheres que a acompanhavam desde a infância. Teve de buscar o pão para sobrevivência. Transitou abruptamente do palácio à choça. Viu-se obrigada a implorar, de imediato, ao menos um precário alojamento, aqui e ali, negado por todos, temerosos da represália dos poderosos do dia.
Logrou acolhida — numa pocilga. Encaminhou-se a um albergue, esperando que sua entrada não fosse impedida. Uma vez dentro, disse com toda amargura da alma: “Despojaram-me de tudo quanto eu tinha. Nada me resta, senão rogar a Deus”. O hoteleiro lhe designou para descanso um compartimento miserável, onde guardava seus apetrechos, A sombria habitação servia também para os porcos, que ele fez sair de antemão, deixando livre o local para a Condessa da Turíngia, Princesa da Hungria. Ao despedir-se, disse o hoteleiro, não sem amarga ironia: “Aqui, senhora, sois dona, fazei o que vos aprouver”. E saiu, deixando-a na semiobscuridade com uma lamparina” (cf. 16).
Outros alojamentos que procurou não lhe foram propícios.
Certo dia, atravessando um riacho lodoso sobre uma pinguela de pedras, Isabel topou ao meio do caminho da improvisada ponte com uma velha mendiga, a quem por diversas vezes anteriormente ajudara. A velha, reconheceu-a, mas contrafeita, deu-lhe inesperado empurrão, derrubando-a na água lamacenta. “E somando o escárnio a este ato de brutal ingratidão, lhe gritou: “Bem feito! Não quiseste viver como Condessa ... agora andas por aí pobre e posta de lado ... Quem quiser que venha ajudar-te a levantar ... Não contes comigo!”.
Isabel riu-se a bom rir de sua própria queda: “Que isto valha pelo ouro e pela prata que usei noutro tempo!” “E cheia de regozijo e de pura alegria foi lavar suas roupas manchadas de lodo numa fonte próxima” — “sua alma”, porém, comenta belamente o biógrafo, “lavou no sangue do Cordeiro”. (cf. 17).
Eis que alcançara a perfeita alegria.
Crucificada com Cristo
Por fim, graças ao empenho de nobres cavaleiros de reta consciência, que voltavam da Cruzada — de resto, fracassada —, com os despojos mortais do Conde Luís, Isabel foi convidada para o solene sepultamento de seu esposo. Com o coração dolorido, mas a alma pacificada, pode despedir-se com as palavras: “Oh, Deus meu! Agora o deixo, e a mim mesma também me deixo, e tudo entrego à vossa santa vontade. Não quisera, ainda que tivesse poder de fazê-lo, resgatar sua vida a custo de um só dos meus cabelos, a menos que assim o quisésseis vós, Deus meu” (18).
Graças a um acordo, com o Conde em exercício, mediado pelos cavaleiros, o pequeno filho de Luís e Sofia, Hermann, foi reconhecido herdeiro do Condado, mas veio a morrer de morte suspeita ao atingir a maioridade. A filha mais nova, Gertrudes, foi confiada a um mosteiro, do qual veio a ser abadessa. A filha mais velha, Sofia, após crescer num mosteiro, acabou por herdar o Condado anexo de Hesse, e prologou a descendência direta da Santa.
Quanto a Isabel, lhe foi pago um dote, que prontamente distribuiu aos necessitados, e concedido o apanágio da cidade de Marburgo. Nomeou oficiais e juízes para mediar a governança. Colocou então os pobres no orçamento. Integralmente. Como despesa obrigatória. Com o recurso que administrava, proveniente dos impostos dos ricos proprietários da cidade, fez construir, e mantinha, um hospital para os pobres, onde se dedicava a minorar as dores e incutir a alegria e o sentido cristão da vida a todos os sofredores. Habitava em rude morada adjacente ao hospital, ali trabalhava, fiando e tecendo, para angariar o seu sustento. Morreu de uma febre, aos 24 anos, em 17 de novembro de 1231. Nos últimos instantes, afugentou o demônio que ainda lhe rodeava, e disse às companheiras: “Tende paciência que isto já se acaba” (19). Suas derradeiras palavras foram: “Oh, Maria socorrei-me! Chego ao momento em que o Senhor chama seus amigos às bodas ... Em voz baixa, murmurou: “Silêncio! Silêncio”. Dito isto, inclinou a cabeça, como em um doce sonho e entregou triunfante o suspiro final” (20).
Curta foi sua vida; a caridade e as tribulações, porém, ingentes. Foi denominada “A Misericórdia Crucificada” (21).
Desde menina, a oração constante era a força que animava seu trajeto de fé, esperança e amor. Herdou o manto da caridade de São Francisco de Assis. Embora trilhasse desde os dezesseis anos o caminho penitencial da vida terciária, como era habitual entre as primeiras Irmãs, passou a vestir um hábito similar ao das Clarissas e o cordão, que lhe foram consignados em cerimônia solene dois anos antes de sua morte, e encerrou a carreira “como mulher consagrada no meio do mundo (soror in saeculo)”, diz o Papa Bento XVI (22). O lema de sua existência, bem se poderia gravar, foi “Servir Jesus Cristo nos pobres e os pobres em Jesus Cristo”.
Quatro anos após a sua morte, a Igreja proclamou Isabel da Hungria — Santa, reinando com Cristo na glória do céu.
Nela se cumpriu exemplarmente a palavra do Salmista: “Distribuiu, deu aos pobres, sua justiça permanece eternamente, e a sua força se exaltará na gloria” (Sl 112, 9).
À frente de sua família, o cunhado, usurpador do Condado da Turíngia, fez construir magnífica igreja em Marburgo para acolher com toda solenidade os restos mortais de Santa Isabel da Hungria. Séculos depois, um descendente direto da Santa, Felipe de Hesse, tornando-se luterano, desrespeitou e vilipendiou as relíquias de sua antiga avó.
O maligno, no entanto, não prevaleceu contra ela. A veneração a Santa Isabel da Hungria permanece em todo o orbe cristão. É considerada a Santa Clara da Alemanha, a “Amada Santa”, a “Mãe e Patrona dos Pobres”. Na Hungria, é um ícone da identidade histórica da nação.
Os Terceiros franciscanos a reconheceram como Irmã, Padroeira, e sua especial representante na Tríplice Milícia, pelo Pobrezinho de Assis fundada e consagrada a serviço do Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Grande Pobre, Filho de Deus feito carne. Carne sofrente. Que sofreu no Calvário, em Jerusalém, e sofre ainda em todos os crucificados — os empobrecidos da história, que anseiam pela caridade, cujo nome primeiro e básico é Justiça, Justiça Social. Trata-se de colocar o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda. Foi esta a gastança, a santa gastança, que tornou tão grande Santa — Isabel da Hungria.
O Papa Bento XVI apontou Santa Isabel da Hungria como “um verdadeiro exemplo para todos aqueles que desempenham funções de guia: o exercício da autoridade, em todos os níveis, deve ser vivido como serviço à justiça e à caridade, em busca constante do bem comum” (23).
Na Igreja das Chagas do Seráfico Pai São Francisco em São Paulo, Santa Isabel da Hungria permanece lembrada o ano inteiro, mas em 17 de novembro, comemoração de sua partida para o Pai, Dia Mundial dos Pobres, os Irmãos celebram a festa da querida Padroeira da Ordem Franciscana Secular invocando seu exemplo de vida com singela canção, para que, também como ela, exalemos entre as dores do mundo o bom odor de Cristo, o perfume da justiça e da caridade:
Santa Isabel da Hungria, Senhora no Reino do céu
Tu que na terra serviste, alegre, os pobres de Deus
Sê para nós um exemplo de Fé, Esperança e Amor
Que construamos no mundo o Reino de Nosso Senhor
// E com Francisco e Clara, Santa Isabel também vem
Semeando entre as dores do mundo Alegria, a Paz e o Bem //
Santa Isabel da Hungria, rogai por nós.
Edmilson Soares dos Anjos
CITAÇÕES/BIBLIOGRAFIA
Discurso do Papa Francisco, viagem à Hungria, Sábado 29 de abril de 2023, Encontro com os pobres e refugiados, Igreja de Santa Isabel, Budapeste.
PORT, Fernando, Frey, OFM, Isabel de Hungria, Editorial Apolo, Barcelona, 1952, p. 118
Idem, p. 121
Idem, p.125
Idem, p.125
Idem, p.130
Idem, p. 144
Idem, p. 102
Idem, p. 111
Idem, p. 112/113
Idem, p.56
Idem, p.251
Papa Bento XVI, Santa Isabel da Hungria, Audiência Geral, 20 de outubro de 2010
FORT, Fernando, Frei, OFO, op. cit. p.180
Idem, p. 192
Idem, p. 204
Idem, p. 211
Idem, p. 220
Idem, p, 324
Idem, p. 324
Idem, p. 102;197
Papa Bento XVI, op. cit.
Papa Bento XVI, op. cit.
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