Uma tentativa diabólica
Postado no Largo do Ouvidor, um magro demônio atentava na sóbria e serena majestade do frontispício da Igreja das Chagas, quando observou dois Irmãos Terceiros que dela saíram e se despediram em sua proximidade desejando mutuamente “Paz e Bem”.
Mordiscando alguma coisa, o magro demônio se pôs a cogitar:
— Vasto é o mundo, incerta a história, e infeliz sou eu, que, desprovido de esperança, labuto na escura faina de incutir a maldade e disseminar a violência. Que proveito aufiro deste infausto destino, a não ser a mesquinha glória de fazer outros sofrerem e se tornarem iguais ou piores do que eu? Há nisto alegria e sucesso? Ou tão somente o remordimento vil de uma amargura inepta?
Assim pensava, quando teve a atenção despertada por um gatinho abandonado, que miava, faminto, entre as folhagens. Deu-lhe um pedaço do lanche que comia. Logo, saciado e grato, o gatinho esfregou-se em suas pernas. Adiante, um esquálido cão esgaravatava no lixo. Deu-lhe também de comer. Satisfeito o animalzinho abanava a cauda.
Um sentimento diverso e conflitante assomou na alma do magro demônio. E ele passou, duvidosa, furtivamente, e a medo, a prodigalizar tais gestos de benevolência e compaixão — mesmo aos seres humanos, aos quais lhe cumpria, em fatal determinismo, desencaminhar e perder. Chegou enfim a coibir uma briga, e — que prodígio feliz! — desviar alguém da trajetória de uma bala assassina.
Dois diabretes, que fiscalizavam seus pares, flagraram-no em tais benéficos cometimentos, e arrastaram-no, violentos, desmascarando-o, rancorosos, no tribunal do inferno.
Um severo demônio promotor assacou-lhe, tremendo, a medonha acusação:
— Tu praticas o bem!
Imenso e pavoroso clamor irrompeu da diabólica turbamulta horrorizada:
— Morra! Pisa-o, Satã! Frege-o! Fulmina-o!
Levantando-se de seu trono candente, interpelou-o, assombroso, o Grande Demônio:
— Que dizes? Como explicas o péssimo comportamento que a ti se imputa? Vê que te suprimo! Infeliz! Arregaço-te a alma!
Por todos profligado, o magro demônio, temeroso, certo de sua desdita, de antemão convicto de nefando crime, intentou, porém, argumentar em seu favor. Eis que operara o bem pelo bem, sem esperança de qualquer retribuição divina. Mas cultivava secreto maligno desígnio. Experimentava, disse uma nova forma de afronta a Deus. Pois, tanto tempo passado, não idolatravam ainda os homens ao Outro, como figura da compaixão e do bem? Ora, então: apropriemo-nos do bem! Façamo-lo girar ao nosso demoníaco favor. Pratiquemos o bem — contra e à revelia de Deus! Não ostentemos doravante as sombrias cores do mal. Transformemo-nos em anjos de luz!
Surpreendida, toda a diabada emudeceu.
O Grande Demônio inquiriu:
— Como identificaremos o bem?
Respondeu-lhe o magro demônio:
— Ora, senhor, o bem para alguém é o que lhe sabe bem — aquilo que no momento lhe apraz.
O Grande Demônio ponderou:
— Mas o que é bom para o gato não agradaria decerto ao rato.
O magro demônio ardiloso observou:
— Ora, senhor, a um gato dorminhoco e bem alimentado pouco se lhe dá das andanças do rato.
E assim, acatada a empresa, estatuiu-se no inferno: Façamos o bem pelo bem —apregoavam perversamente. Saciemo-nos de bens. Supriremos os desejos. Equacionaremos as necessidades. Não haverá mais pobres e aflitos entre nós. Eis que chegou a hora — e é agora — em que, demônios, homens e animais, poderemos olhar para o céu, e bradar:
— Vai-te, Senhor! Retira-te, Deus! Recolhe-te ao Empíreo! Não precisamos de ti! Já não embargas nossa felicidade!
O Altíssimo contemplou esse empreendimento de nova Babel com paciência e pena.
Pondo mãos à obra, todo o inferno aconselhava ao bem a terra. Inaugurou-se o Milênio infernal. Mesmo os leões foram levados a bastar-se com carne de soja. Transgênicas, as videiras produziam enormemente. Cada videira, mil cachos; cada cacho, mil bagos de dulcíssima uva. E assim o trigo. E os cereais todos. E as frutas em penca.
E os demônios, homens e animais, congraçados, brincavam e dormiam, comiam e copulavam.
Tudo prosperava, exceto que, como sombria e tortuosa mancha, propagava-se o vício da ociosidade e da preguiça; eliminado todo estorvo, o incitamento à superação desmaiava; as diferenças entre os seres aplastavam-se em aplasia degradante; as personalidades se ensombreciam numa repulsiva mesmidade; o tédio afinal grassava como nojento soberano; e o inato instinto do sublime cavava no coração dos homens um vácuo insaciável — que já nenhuma droga preenchia. Entre os próprios animais, a merencória placidez enervava e arruinava a graça do viver.
Para espanto do Grande Demônio, pequenos grupos, regurgitando a materialidade prazerosa, principiaram a fazer penitência. A gratuita concessão de “Pão e Circo” já não lhes apetecia. Desgostavam-se. Buscava o jejum e o sacrifício, e dobravam os joelhos à demanda de Deus, do Deus de misteriosa e infinita transcendência. Castigados, obstinavam-se. Mortos, multiplicavam-se.
Em vão a direção demoníaca redobrava com sanha o furor para inculcar a facticidade geral, imanente e materialista do bem. Reducente e orgulhosa, a utopia, intempestiva e abrupta, mergulhava na imposição do medo, da perseguição, da violência, e esfacelava-se na contradição da mais insuportável tirania,
O Grande Demônio considerou-se pago, porém, pois, do iniquo atentado, absorvera a malignidade infernal grave intensidade.
E os homens compreenderam um pouco mais — com certo peso na alma, talvez — os méritos da economia do Altíssimo, que dirige a bom fim, compassada e compassivamente, tanto quanto possível, o terrível drama da criação, saldando a dor pelo amor. E experimentando mais uma vez que a procacidade humana não se impõe à sabedoria divina, e que o suposto bem que se apraz nada é frente ao eterno Sumo Bem que o mundo santifica, entenderam melhor, quem sabe, que pretensiosos atos bons, intentados à revelia de Deus, são como os frutos de que fala Agostinho: vicejantes no vale amargo da cidade maldita — por fora bela aparência; por dentro, fumaça e cinzas. Porque até o interesse pelo pobre, sem o Verbo, se torna engodo; como a virtude: quando ab-roga Deus, descamba em vício.
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