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O mendigo e o Grande Demônio

 

O mendigo e o Grande Demônio 

Em frio anoitecer, saindo da Igreja das Chagas, abria eu caminho no Largo São Francisco entre dezenas de sem-teto, cuja indigência, penetrando-me os sentidos, a razão e o coração, afligia-me o bem-estar e o senso de justiça. Avassalado por impotência e angústia, repetia mentalmente a oração que o Senhor consignou por diuturna tarefa a Sor Consolata: “Jesus, Maria, amo-vos; salvai almas. Jesus, Maria, amo-vos; salvai almas”. 

Estranho calor acercou-me. Voltei-me. Eis o Grande Demônio. 

Confessa arreliou-me , recitavas teu indefectível mantra.   

Qual? perguntei. Dize-mo. 

Susteve-se o Grande Demônio na iminência de proferi-lo. As sagradas palavras já se lhe afloravam à boca.  

Filho do homem suspirou, guardo-me de tuas pequenas astúcias. 

Ah, Grande Demônio eu disse, se abrisses a boca e os ouvidos! Se não fechasses o coração à possibilidade da Graça! Não sabes a energia que vela numa simples e terna palavra. Bastar-te-ia, quiçá, um pequeno movimento de amor e romperias do abismo em que te apostemas ao cume das nuvens; reaparecerias, incontinenti, fulgurante de glória junto aos Arcanjos, aos Tronos, às Dominações, aos Principados e Potestades. Foste o mais belo dos anjos, a estrela da manhã; és o buraco negro do universo, o horror das criaturas; mas eis que Deus, o Deus que em sublime perfeição te criou, anseia de ti tão somente, com a avidez de um mendigo, um livre gesto de amor para restituir-te à luminosa natureza que privavas. A tua protérvia não lhe esgotou a misericórdia invencível. Nem todos os caminhos se fecharam para ti. Papini professou bela esperança a teu respeito. O grande Orígenes não te excluiu da restauração universal. E São Jerônimo, no Comentário aos Efésios, profetizou: “O Anjo apóstata voltará ao estado original...”. Não retardes, te peço, o império universal da Graça.  

Tais belas almas — retrucou, no que trazes à colação, foram desautoradas pela Igreja. 

Grande Demônio redargui, também a misericórdia de Deus tem razões que o dogma desconhece. Não és o Tentador? Tenta, pois, a Graça. Não subsiste em ti a nostalgia de uma passada amizade com Deus? Vasculha tua memória. Vê o que perdeste. Chora sobre ti, sobre a destruição que te acomete. Ingente mole de angústia te oprime a alma. Imane abutre de dor te corrói. Muda tua sorte. Intenta recobrar tua antiga felicidade. Não há em ti algo de poeta, de nobre, de herói? Surpreende-me por vezes em tua indigência uma tétrica beleza e abissal grandeza. 

Se lograsses converter-me, filho do homeminsinuou, a glória dos maiores santos te conviria. 

Arreda, Grande Demônio! — bradei. — Não me tenta teu orgulho espiritual. Almejo simplesmente a universalidade do bem. 

Neste momento, um mendigo solicitou-lhe uma ajuda. Já que o Grande Demônio, ele mesmo, não porta dinheiro, passei-lhe discretamente uma nota, que ele dispensou maquinalmente ao pedinte. 

Deus te abençoe! agradeceu-lhe o pobre. 

Contorceu-se horrivelmente o Grande Demônio como se lhe vibrassem violenta chicotada. 

—  Ah, filho do homem — disse —, a bênção de Deus me atassalha! Quisera Deus enfrentar-me em meu próprio terreno, ódio contra ódio, já de per si eu o derrotaria decerto. Ele, todavia, permanece inabalável no amor, que a minha rebelião não demove. Por meu títere, ao beijo traidor, respondeu-me: “Amigo!”. Ele me ama! E por amor me conserva o ser. O amor de Deus me persegue, me prende, me abate, me verbera a alma com tortura sem nome. Ai que o amor de Deus me destrói! 

Voltou-se de inopino o Grande Demônio e arrebatou o dinheiro ao pobre, que se tomou por sua vez de impropérios: 

Ladrão, desgraçado, maldito! 

Acalmou-se o Grande Demônio. A saraivada de opróbrios serenou-o de pronto. Saiu, cabeça baixa, resmungando: “Ladrão, desgraçado, maldito”, ora tal me condiz. E deixou cair o dinheiro, que o mendigo sofregamente recolheu, perguntando: 

Quem é? Que defeito lhe tem? Será mais precisado que eu? 

—  Por certo assenti. 

E pareceu-me de fato que a quem decaiu por soberba a via da humildade convém. 

Ao deitar-me, cansado com as vicissitudes do dia, recitei a oração que Nossa Senhora ensinou aos três pastorinhos em Fátima: 

Oh, meu Jesus, perdoai-nos, livrai-nos do fogo do inferno, levai as almas todas para o céu e socorrei principalmente aquelas que mais precisarem”. 

Confesso, e disto aqui me penitencio. Infringi talvez a ortodoxia; exautorei então o magistério; feri, quem sabe, o dogma. Por impossível, minhalma imprecava nesta prece noturna salvação para o Grande Demônio. 

 

Edmilson Soares dos Anjos     




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