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A mística do amor como regra de ouro para o caminho dialogal: uma leitura teológica a partir da “religação” zubiriana

 A mística do amor como regra de ouro para o caminho dialogal:

uma leitura teológica a partir da “religação” zubiriana


Resumo: O mundo contemporâneo é caracterizado pela pluralidade, diversidade e múltiplas

oportunidades reflexivas e propositivas. Estamos gradualmente abandonando um modelo de

sociedade fundamentado em uma racionalidade homogênea, passando a abraçar a inclusão das

inúmeras possibilidades. Isso exige que aprendamos a lidar com a complexidade, dialogando

com todas as perspectivas. Pois, neste momento marcado por polarizações, conflitos e desafios

interculturais, o diálogo autêntico e respeitoso se torna uma necessidade premente. Nesse

contexto, a busca por uma abordagem que promova a compreensão mútua, a empatia e a

harmonia nas relações humanas é de extrema importância. É nesse cenário que a mística do

amor emerge como uma poderosa força transformadora, capaz de orientar e enriquecer o

caminho dialogal. Dessa forma, este artigo propõe uma reflexão sobre a importância da mística

do amor como uma regra de ouro no caminho dialogal, com base na abordagem teológica da

“religação” proposta por Zubiri, bem como na contribuição de Raimon Panikkar para o diálogo

inter-religioso e intercultural. Por meio da pesquisa bibliográfica e uma análise cuidadosa dos

pensamentos de Zubiri e Panikkar e suas compreensões da experiência religiosa, exploraremos

como essa dimensão mística pode desempenhar um papel fundamental na promoção do diálogo

e na busca por uma conexão autêntica com a realidade fundante e a interpessoal. Ao longo do

artigo, será apresentada uma análise teológica que enfatiza o papel transformador do amor e sua

capacidade de criar uma base sólida para um caminho dialogal enriquecedor. No primeiro

momento, abordaremos a “religação” zubiriana, explorando suas ideias sobre a experiência

religiosa como um processo de busca por uma conexão transcendental e interpessoal. Em

seguida, adentraremos na compreensão da dimensão do amor como uma regra de ouro,

analisando sua dimensão mística e seu poder de direcionar nossos relacionamentos. Veremos

como essa mística pode estabelecer as bases necessárias para um diálogo autêntico e

enriquecedor, levando em consideração as perspectivas de Raimon Panikkar. Ao final deste

estudo, esperamos que os leitores sejam inspirados a abraçar a mística do amor como uma

bússola para o diálogo. Que possamos reconhecer o potencial transformador do amor e sua

capacidade de construir pontes, entre pessoas, culturas e tradições, guiando-nos rumo a um

mundo mais compreensivo, solidário e em harmonia.


Palavras-chave: Zubiri; Mística do amor; Regra de ouro; Caminho dialogal; Religação.



Introdução


        No mundo atual, marcado por polarizações, conflitos e desafios interculturais, o diálogo

autêntico e respeitoso se torna uma necessidade premente. Dessa forma, a busca por uma

abordagem que promova a compreensão mútua, a empatia e a harmonia nas relações humanas

é de extrema importância. É nesse cenário que a mística do amor emerge como uma poderosa

força transformadora, capaz de orientar e enriquecer o caminho dialogal e, de promover a

unidade e a comunhão entre as pessoas.

        Além das contribuições de Zubiri1, também nos inspiramos em Raimon Panikkar2, que

enfatiza a importância de uma abordagem interreligiosa e intercultural para o diálogo. Sua visão

ampla e inclusiva do diálogo nos leva a considerar a mística do amor como um elemento

essencial para transpor diferenças e estabelecer conexões profundas em meio à diversidade e

pluralidade.

        No primeiro momento, abordaremos a filosofia zubiriana e a religação, explorando suas

afirmações sobre a experiência da religiosidade como um processo de busca por uma conexão

transcendental e interpessoal. Em seguida, adentraremos alguns textos da Sagrada Escritura na

compreensão da dimensão do amor como uma regra de ouro. Por fim veremos como essa

mística pode estabelecer as bases necessárias para um diálogo autêntico e enriquecedor, levando

em consideração as perspectivas de Raimon Panikkar.


1 O caminho até a “religação” zubiriana e a religiosidade


        Para introduzir o termo da religação vamos utilizar, em sintonia com a filosofia de

Xavier Zubiri, o pensamento contemporâneo de Edgar Morin, ao afirmar que “o ato ético é um

ato de religação: com o outro, com os seus, com a comunidade, e uma inserção na religação

cósmica” (MORIN, 2005, p. 13). Com isso, em vez de tratar o conhecimento como algo isolado

e desvinculado da realidade, a religação nos leva a reconhecer a importância de considerar o

contexto mais amplo e os impactos éticos das nossas ações e conhecimentos.

        Por falar em “desvinculado da realidade”, lembramos que a realidade é justamente o

ponto crucial na filosofia zubiriana que passou por três fases até chegar ao que chamamos fase madura.

         A primeira etapa foi a fenomenológica de Husserl, “voltar às coisas mesmas”, que

significa uma volta do psíquico às coisas mesmas e não apenas como uma teoria do

conhecimento. Contudo, para a fenomenologia as tais coisas eram o correlato objetivo e ideal

da consciência, o que para Zubiri sempre pareceu obscuro e insuficiente.

Já Heidegger, a partir da fenomenologia, observou a diferença entre as coisas e o seu

ser, e esta foi a segunda etapa, em que a metafísica passa a fundar-se na ontologia. Porém,

Zubiri não renunciando a sua liberdade de filosofar, e já na terceira etapa, com maturidade e

muita reflexão, se posicionará definitivamente afirmando que o ser se funda na realidade e não

o contrário. Assim, para ele, a metafísica é o fundamento da ontologia, portanto, o que a

filosofia estuda não é nem a objetividade e nem o ser, mas a realidade enquanto tal, e esta é a

etapa rigorosamente metafísica (ZUBIRI, 2010, p. 27s).

Engana-se, todavia, quem pensa tratar-se do realismo ingênuo da metafísica clássica.

        Para Zubiri a realidade supõe uma importante modificação de como tradicionalmente se

entendia esse conceito. A realidade tem a ver com aquilo cujas notas têm uma suficiência

constitutiva que possibilita autonomia para se atualizar no mundo, e isto é substantividade e

não substância. A pessoa sente as coisas como realidade quando as apreende de forma física e

não conceitual.

        Assim, muito caro para Zubiri é a questão da inteligência. “A função formal e radical

da inteligência consiste em apreender as coisas como realidades, na forma de realidade”

(ZUBIRI, 2008, p. 106). Nessa apreensão, a inteligência senciente não pode ser comparada ao

dualismo da tradição do pensar que separa sentir e inteligência em coisas distintas, pois o sentir

e o inteligir são parte de um único ato de apreensão senciente do real. “Todos os sentimentos

humanos, mesmo os mais elementares e superficiais, envolvem um momento de realidade como

tal” (ZUBIRI, 2015, p. 67).

        A experiência do sentir nos instala de forma radical na realidade, é um processo

senciente, que não se trata de uma simples excitação biológica, desencadeada por substâncias

psicoquímicas e que determinam um processo fisiológico, mas sim, deriva de um momento de

suscitação que provoca uma modificação tônica e que obriga a uma resposta (ZUBIRI, 2011,

p. xxxix). Então a inteligência senciente é aquela que apreende impressivamente as realidades

e, na qual distinguem-se três momentos: suscitação, modificação tônica e resposta.

        A suscitação na apreensão também possui uma estrutura formal que pode ser dividida

em afecção, alteridade e força de imposição. O que desperta na apreensão afeta o homem, pois

a afecção é um momento marcante. No ato em si apreende-se que, o que afeta é algo “outro”,

portanto corresponde ao segundo momento, a alteridade. E, finalmente, o que afeta o fará com

uma força imponente, portanto, a imposição (ZUBIRI, 2012, p. 67). Assim, a essência do ato

de apreensão consistirá na mera atualização da realidade, pois pela apreensão o homem se

instala na própria realidade. A afeição humana é afeição vivenciada na realidade, a alteridade

no homem é realidade e a força de imposição é também a força da realidade, é o poder do real.

        Na sua obra póstuma, El hombre y Dios, o filósofo basco nos permite compreender que

Deus não é uma causa metafísica clássica. A funcionalidade de Deus consiste em ser o

fundamento da realidade, onde Ele é seu constituinte formal. Deus oferece possibilidades aos

humanos, através das situações e, portanto, nos impele como pessoa a existir escolhendo as

possibilidades oferecidas pela realidade, e sendo assim, Ele é o nosso suporte. “Deus, sendo um

constituinte formal das coisas, dá-se à realidade. Essa doação de Deus cria uma tensão teológica

entre o eu e a realidade” (ZUBIRI, 2012, p. 194-195). Portanto, tornando-se impossível ao

homem separar Deus da realidade.

        “Deus não está extra vitam (fora da vida), nem tampouco juxta mundum (ao lado do

mundo), mas intra realitatem (dentro da realidade), (...) o homem, ao viver na sua experiência,

nota que Deus está incluído no seu ser, na sua vida” (TEIXEIRA, 2013, p. 135). Nessa

perspectiva, Deus está em tudo, e o homem emprega a própria vida para chegar “até” Deus,

onde a partir da vida e a existência deste mesmo homem traz consigo a tarefa de se religar ao

poder daquilo que é real (MATTOS, PONCHIROLLI, 2016). Sendo assim, para Zubiri

           

 A religação se dá nessa abertura da realidade do homem que permite que Deus

se atualize em seu fazer-se, onde o poder do real confere aquele caráter

verdadeiro dessa experiência. Isso se deve precisamente ao fato de que o

homem e Deus estão numa unidade absoluta e numa distinção em caráter

relativo. Deus é o absolutamente absoluto, isso é, aquele que tem por si seu

caráter absoluto, e o homem recebe esse caráter absoluto de Deus,

constituindo-se assim como relativo, ou seja, o homem é relativamente

absoluto. (ZUBIRI, 2012, p. 41)



        Agora já é possível relacionar a religação com a experiência religiosa, que segundo

Xavier Zubiri, vai além de práticas e crenças, envolvendo uma dimensão profunda de conexão com a

 divindade (realidade absolutamente absoluta) e interpessoal (alteridade). Zubiri propõe

o conceito de “religação” para descrever essa experiência, destacando a ideia de reconexão com

o transcendente e a necessidade de uma abordagem dialogal nesse processo. Contudo, neste

sentido, o filósofo Francisco Ortega irá destacar que:


O poder do real impele o homem arrastando-o para a intelecção de uma

realidade fundamento, é a experiência radical do homem em seu viver, é o

problematismo ante o enigma radical pelo termo que adquirirá meu eu na vida,

mas eu poderia ficar-me aqui, sem mais, na mera problematicidade, ou seja, a

entrega a essa realidade-fundamento é algo optado, assim eu opto por aderirme

a ser absolutamente eu em meu modo de ser relativo. (ORTEGA, 2000, p.

273)


        Dessa forma, apesar do poder do real me impelir para a realidade fundamento, devido à

liberdade humana, a adesão é uma opção entre as possibilidades da vida, na qual as dimensões

social e histórica da pessoa humana influenciam a concreção da fé. Segundo Zubiri, “a história

das religiões representa a experiência que os povos tiveram de Deus ao longo da história,

incluindo a história da fé desses povos” (ZUBIRI, 2012, p. 302). Isso não é relativismo, o que

Zubiri diz é que a realidade fundamental de Deus é percebida com diferentes aspectos.

        De acordo com Zubiri, a fé consiste na dimensão radical da entrega a Deus, o que afeta

a totalidade do ser humano. A entrega, nesse sentido, é o que Zubiri chama de religião, que é a

plasmação da religação. Todavia, nem toda plasmação leva a uma religião, por isso, melhor

dizer religiosidade. A história das religiões é a experiência teológica da humanidade, tanto

individual como social e histórica, sobre a verdade última do poder do real, de Deus (ZUBIRI,

2012, p. 380). Porém, o Deus a que Zubiri se refere não é o Deus de uma determinada religião,

mas daquele Deus enquanto realidade absolutamente absoluta.

        Portanto, temos diante do fenômeno da religião um fato da realidade que vai ao encontro

de uma alteridade concreta, pois partem de pessoas que convivem como realidades respectivas

e abertas, que estão inseridas num ambiente de coletividade intercultural e consequentemente

de pluralismo religioso, num horizonte extremamente alargado pela globalização. Assim, temos

pessoas imersas numa situação religiosa, cuja “diversidade de religiões é uma diversidade que,

em última instância, deve apoiar-se numa diversa concepção dos deuses” (ZUBIRI, 2008, p.

124). Essas diferentes concepções ao longo da história formularam, de maneira sintética, três

distintos caminhos: o panteísmo, o politeísmo e o monoteísmo.

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Annales Zubirianus – São Paulo/ SP - Brasil

Vol. 3 2023

        A via da religação chegou filosoficamente a uma realidade absolutamente absoluta que

é realidade última possibilitante e impelente, isto é, ao Deus das religiões enquanto Deus

(ZUBIRI, 2012, p. 152). Dessa forma, diante da realidade concreta do pluralismo religioso,

veremos como o diálogo desempenha um papel crucial nesse processo. Mas antes de tratarmos

sobre o diálogo vamos percorrer alguns textos bíblicos que irão fundamentar a regra de ouro

para este diálogo.


2 A dimensão do amor como regra de ouro


        Primeiramente vamos discorrer sobre o que seja a regra de ouro, cabe ressaltar que

estamos tratando de um tema das Sagradas Escrituras, porém o termo em si não faz parte do

texto bíblico. Todavia em algumas Bíblias ela aparece como título da perícope e como nota de

rodapé3 ou apenas nos comentários das notas de rodapé. Trata-se de um princípio ético

fundamental que orienta o comportamento humano. É uma instrução clara e concisa que nos

convida a tratar os outros da maneira como gostaríamos de ser tratados. Essa regra é

mencionada por Jesus Cristo durante seu Sermão da Montanha4, registrado nos evangelhos de

Mateus e Lucas: “Tudo aquilo, portanto, que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a

eles, pois esta é a Lei e os Profetas” (Mt 7,12). “Aconteça o que acontecer, façam aos outros o

que vocês querem que eles façam a vocês. Se vocês amam aqueles que os amam, que mérito

vocês têm? Até os pecadores amam aqueles que os amam” (Lc 6,31-32).

        Essa regra de ouro é um princípio de conduta que ultrapassa fronteiras religiosas e

culturais. Ela ressoa como uma moral inerente a muitas tradições e nos lembra da importância

de considerar o bem-estar dos outros em nossas ações e decisões. Dessa forma baseia-se na

empatia e na compaixão, incentivando-nos a colocar-nos no lugar do outro e a agir com

bondade, justiça e respeito. Ela nos desafia a superar nossos próprios interesses egoístas e a

tratar os outros com dignidade, considerando suas necessidades e desejos.

        Este texto bíblico pode nos remeter a muitos outros, mas nos permitiremos ir à Carta de

Paulo aos Romanos: “Não devais nada a ninguém, a não ser o amor mútuo, pois quem ama o

outro cumpriu a Lei. De fato, os preceitos: Não cometerás adultério, não matarás, não furtarás,

não cobiçarás, e todos os outros se resumem nesta sentença: Amarás o teu próximo como a ti

mesmo. A caridade não pratica o mal contra o próximo. Portanto, a caridade é a plenitude da

Lei”. Aqui podemos observar que o texto traz uma síntese dessa regra: a caridade.

Além de sua inclusão nos ensinamentos de Jesus, a regra de ouro também pode ser

encontrada em várias outras religiões e filosofias ao longo da história5. Também no judaísmo

encontramos: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Lv 19,18).

        Ao aplicarmos a regra de ouro em nossas vidas, promovemos a construção de

relacionamentos saudáveis e significativos, baseados no amor e na reciprocidade. Ela nos leva

a refletir sobre nossas ações e a considerar o impacto que elas têm nos outros. Além disso, nos

desafia a combater a injustiça, a opressão e todas as formas de discriminação, buscando

promover a igualdade e a dignidade de todas as pessoas. E, principalmente, estamos seguindo

o exemplo de amor e compaixão estabelecido por Jesus Cristo. Ele ensinou que amar a Deus e

amar o próximo eram os dois mandamentos mais importantes (Mt 22,37-39). O amor ao

próximo, expresso através da regra de ouro, é um reflexo do amor a Deus, pois reconhecemos

a imagem de Deus em cada pessoa e respondemos a ela com amor e cuidado.

        Como fundamento antropológico-teológico o amor ao próximo é o mesmo do amor a

Deus. Como já tratamos neste artigo, a pessoa é uma realidade relativamente absoluta (ZUBIRI,

2012, p. 93). Essa relatividade apoia-se sobre o fato da sua ligação formal com a realidade, em

relação à qual ele se compreende como um “eu-diante-de”. Imersa no real, a pessoa compreende

que seu “eu” não é único, mas existem também “outros”, que são afetados da mesma forma

pelo poder do real e que estão sob a mesma potência fundamental, Deus. É a religação com esta

realidade última que põe a pessoa em conexão com todos aqueles com os quais ela está

conectada de forma “fundamental”.

        Assim podemos entender que, essa dimensão do amor como regra de ouro tem

implicações profundas em nossas interações sociais e na construção de um mundo melhor.

Afinal de contas, “tudo está interligado”, conforme encontramos na Carta Encíclica Laudato si’

do Papa Francisco.


Nunca é demais insistir que tudo está interligado. O tempo e o espaço não são

independentes entre si; nem os próprios átomos ou as partículas subatômicas

se podem considerar separadamente. Isto impede-nos de considerar a natureza

como algo separado de nós ou como uma mera moldura da nossa vida.

Estamos incluídos nela, somos parte dela. (LS, 138-139)


        Portanto, quando tivermos bem claro o entendimento disso, tudo se torna mais simples,

deixamos as antigas relações de interesse e abrimo-nos para a alteridade. Essa abordagem

dialogal e empática nos ajuda a superar diferenças, a resolver conflitos e a construir pontes de

entendimento. Assim, podemos estender nosso amor e cuidado não apenas aos que estão

próximos a nós, mas também aos estrangeiros, aos necessitados e aos marginalizados. Dessa

forma, não apenas transforma nossos relacionamentos individuais, mas propicia uma harmonia

já gozada pelos místicos, não apenas cristãos, mas das mais diversas religiosidades. E é sobre

isso que trataremos a seguir, com destaque a Raimon Panikkar.


3 A mística do amor como fundamento para o caminho dialogal


        Como já citamos o amor desempenha um papel fundamental para o caminho dialogal.

O amor nos capacita a superar as diferenças e a nos conectar de forma genuína com o outro,

promovendo um espaço de diálogo. Pois, de acordo com Martin Buber: “Também o amor possui

natureza dialógica, pois obriga a sair-de-si-em-direção-ao outro” (BUBER, 1982, p. 54). E, diz

ainda que:


O elemento essencial do movimento dialógico consiste em voltar-se-para-ooutro.

Do meio do todo, emerge alguém que se transforma em presença e, a

partir daí, o mundo deixa de ser uma multiplicidade indiferente de pontos para

receber uma forma, libertando-se da indiferença. O movimento contrário, o

monológico, é o dobrar-se-em-si-mesmo, isto é, retrair-se diante da aceitação,

na essência do seu ser, de uma outra pessoa na sua singularidade. O outro aqui

se torna apenas uma parte do meu eu. Nesse caso, o diálogo é pura ilusão.

(BUBER, 1982, p. 58)


        Então, a mística do amor nos convida a transpor as barreiras do egoísmo e do

individualismo, reconhecendo a interconexão de todos os seres humanos. Neste sentido vamos

agora apresentar a amplitude da filosofia de Panikkar, a qual emerge não apenas de sua

capacidade intelectual e espiritual, mas também de sua vivência intercultural ao longo de toda

a sua vida. Sua extensa obra não apenas testemunha seu temperamento versátil, mas também

revela o vasto universo em que ele habita, se movimenta e se torna (D’AS, 1996, p. 26-27).

        Assim poderemos entender o que para Panikkar é a filosofia. A sua filosofia intercultural

corresponde a uma atividade humana.


Ao dizer atividade, queremos superar o reducionismo que representa uma

certa concepção da filosofia como algo meramente teórico. Uma filosofia

intercultural não pode eliminar a dimensão da práxis, entendida não apenas

em um sentido platônico e/ou marxista, mas também eminentemente

existencial, para usar outra palavra polissêmica. A palavra 'atividade' também

quer destacar que se trata de um ato, de um agir humano e, portanto, não

precisa se limitar a uma mera operação mental ou racional. (PANNIKAR,

1996, p. 130)


        É visível que para Panikkar a filosofia não deve ser algo apenas teórico ou que não tenha

uma aplicação prática. A práxis, então, é a atividade pela qual o ser humano participa dando-se

conta, de forma mais ou menos crítica, da descoberta da realidade e vai se orientando nela e por

ela.

        Dessa forma, para ele deve haver uma relação entre teoria e prática, na qual a filosofia

não significa somente amor à sabedoria, mas é a sabedoria do amor, ou sabedoria amorosa.

Então o filósofo é um amante; com um estilo de vida que busca harmonia, na qual o amor ao

conhecimento e o conhecimento do amor se unem culminando numa experiência única. Por

isso, para fazer filosofia é necessário ter um “coração puro”, um “espírito ascético” e uma

“entrega total”. Raimon Panikkar é um filósofo profundamente comprometido, em busca da

plenitude da realidade. Ele foi dominado pela paixão pelo todo. E assim como Kant e Ortega,

ele não ensinava filosofia, embora conhecesse bem a história da filosofia ocidental e do

pensamento oriental, ele ensinava a filosofar (ORTEGA Y GASSET, 1997).

        Aqui temos uma grande semelhança com uma frase de Zubiri, que após muito labor em

cima da tradição filosófica, na sua obra Natureza, História, Deus (2010) veio dizer que “a

filosofia, pois, deve ser feita, e por isso não é questão de aprendizado abstrato” (ZUBIRI, 2010, p. 64).

        Neste sentido podemos nos perguntar se há algo em comum entre esse fazer filosofia de

Raimon Panikkar e de Xavier Zubiri, e a resposta virá do próprio autor de sua biografia, o

teólogo Maciej Bielawski (BIELAWSKI, 2014). Segundo Meinhardt, Bielawski descreve que

Panikkar frequentou os cursos de Xavier Zubiri e, que muitos dos temas compartilhados são

questões que Panikkar posteriormente sempre retomou na sua trajetória de vida.


[...] sobre a dimensão histórica e teológica do ser humano, bem como suas

reflexões sobre a filosofia da ciência e sobre a relação entre homem e Deus,

na qual Deus não pode ser reduzido a objeto de conhecimento humano. Todos

eles são temas que Panikkar mais tarde retomaria e desenvolveria ao longo de

sua vida. (BIELAWSKI apud MEINHARDT, 2020, p. 21)


        Apenas isso já nos seria suficiente para demonstrar que houve uma proximidade entre

eles, mas além de outros reconhecimentos citados por Meinhardt tem um ponto que é central, a

inteligência senciente. “É mérito de Xavier Zubiri ter enfatizado o caráter unitário da

inteligência humana que é ao mesmo tempo sensível e inteligente” (PANNIKAR apud

MEINHARDT, 2020, p. 21).

        Aqui faz-se importante destacar a postura crítica de Zubiri ao dualismo, principalmente

no que tange à dualidade entre o sentir e inteligir. Em várias de suas obras veremos essa crítica,

na qual discorre ter ocorrido por toda a história da filosofia e que influenciou uma inteligência

denominada por ele de concipiente e, que por sua vez, formulou conceitos abstratos. Pois bem,

conforme o que Meinhardt pesquisou e descreve em seu artigo e seguindo a linha de confluência

de pensamento com Zubiri,


Panikkar teoriza que sua filosofia dialógica é regida pela harmonia. A

harmonia expressa a realidade interreligiosa de uma maneira não dualista, ou

seja, evita o diálogo dominado, às vezes pela razão ou, às vezes, pelo

sentimento. Essas partes não são independentes, mas formam o diálogo como

um todo. Ao mesmo tempo, a razão e a sensibilidade, o logos e o coração são

ativados. Ao escapar da exclusividade do controle racional, Panikkar se

aproxima de um de seus herdeiros intelectuais: Zubiri. (MEINHARDT, 2023)


        Assim, fica evidenciado também em Panikkar o pensar unitário ou não dualista em seu

filosofar dialógico e que promove a harmonia no caminho dialogal. Mas como entender essa

harmonia? Em que sentido podemos relacioná-la com a mística do amor e como fundamento

para o caminho do diálogo?

        A resposta já nos foi dada nesta mesma citação, ou seja, quando na integralidade do

diálogo a razão e o coração unitariamente são ativados. E, neste sentido, Panikkar, esse grande

místico, de forma poética vai apresentar o coração como categoria filosófica e que propicia a

harmonia no diálogo criando pontes interreligiosas e interculturais (MEINHARDT, 2023), e

porque não incluir também intraculturais. Afinal, se compreendemos que como pessoa somos

realidades que estão respectivamente abertas à alteridade e estamos religados à realidade

absolutamente absoluta, tudo faz parte de uma grande interconexão. Então, a vida mística ou a

vida do místico, além de contemplativa, é sempre uma busca por essa harmonia, e assim foi a

vida desse grande místico, Raimon Panikkar.


Conclusão


        Ao enfrentar os desafios e buscar uma prática autêntica do amor no diálogo interreligioso

e intercultural, torna-se evidente que essa mística que conduz à harmonia não é apenas

um conceito teórico, mas uma proposta que exige ações concretas e engajamento ativo. Nesse

sentido, nos convida a superar nossas diferenças e a cultivar uma abordagem de coração aberto

no diálogo, onde a escuta atenta, a compaixão e a aceitação mútua sejam fundamentais.

        É um desafio a superar estereótipos, preconceitos e dinâmicas de poder, buscando a

transformação pessoal e social e, que nos provoca a ir além de nossas tradições religiosas e

culturais, sem, contudo, dissimular a própria fé, buscar uma espiritualidade inclusiva que

reconheça e valorize a diversidade humana. Pois, na dinâmica cosmoteândrica de Panikkar, o

mundo é o elemento que expressa o lugar onde as coisas acontecem, onde Deus se manifesta e

onde o homem o encontra.

        Por fim, exemplos de vida e pensamento como os de Xavier Zubiri e Raimon Panikkar,

entre tantos outros teólogos, filósofos e místicos, que buscam essa harmonia, são as grandes

testemunhas que nos indicam o caminho do coração como uma dimensão mística, como um

chamado para uma prática dialogal comprometida com a paz e o bem de nossa Oikoumene.

        Afinal, nada existe fora da realidade absolutamente absoluta pois “Nele vivemos, e nos

movemos e existimos” (At 17, 28).


Referências


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