Abacaxi, o Bom Deus e o Grande Demônio
Uma tarde, ao soar dos sinos do Mosteiro de São Bento, vi recompor-se o antigo Largo, com as grandes árvores farfalhando ao vento, e se me fez vívido um remoto encontro que tão doce ali me fora. Revivendo aquele rico passado que se impunha ao rude presente, vacilou-me o tempo. Indeciso e indefinido, ansiava por apoiar minha alma n’Aquele que É.
Assim suspenso, perguntei:
— Onde está Deus neste momento?
Um circunstante respondeu:
— Sobe a Ladeira Porto Geral.
Era o Grande Demônio. Ante a minha estranheza, argumentou:
— Ora, filho do homem, se Deus está em todo lugar, por que não haveria de subir a Ladeira Porto Geral?
E, com efeito, apontou:
— Ei-lo.
Vi um senhor bondoso que adentrava ao Largo, vindo da Rua Boa Vista. Meu coração pulsou. Reconheci.
— É o Senhor! — eu disse.
Já no Largo, abaixou-se o Senhor e recolheu delicadamente do chão um tomate, exposto a ser pisado pelos transeuntes, e o revirava nas mãos com admiração e carinho.
— Mas ... um tomate, — comentei.
— Filho do homem, — disse o Grande Demônio —, não sabes? O Altíssimo admira a Criação, e congratula-se com seus servidores que a desenvolvem. Vê: um anjo prático elaborou esse proveitoso fruto, o tomate; outro, brincalhão talvez, dele excogitou alegre o caqui; um terceiro expôs sua seriedade no kiwi. E assim por diante. Mas nem tudo dá certo. Os servidores do Altíssimo são limitados. Por isto a Criação é imperfeita. O Altíssimo é decerto o Criador, a Causa Primeira, delega, porém, inspiração e competência. Tudo vê, todavia, inspeciona, administra e corrige.
— E tu? — perguntei.
— Tenho cá os meus sucessos. Dos terrores e angústias, lágrimas e aflições, desenvolvo vírus, bactérias e bacilos. Tem-me carecido êxito, contudo, na invenção de novos pecados. Mas no revestimento de velhos pecados com roupagens novas, hás de convir, excedo.
Nisto o Altíssimo depositou cuidadosamente o tomate num canteiro, e à luz do seu olhar estendido ao Largo discerni a boa realidade de sua história. Vi a aldeia de Tibiriçá, protetor da incipiente Vila de Piratininga. A primitiva e tosca ermida e morada dos monges. Vi Amador Bueno, prudente e comedido, recusar intempestiva coroa, e Fernão Dias, resoluto, patrocinar a construção de condizente Igreja para nela ser sepultado, o que de fato veio a ocorrer depois de, levado por sonho infausto, ser restituído morto em fatal bandeira. E vi, ademais, o Largo em que no passado eu vivera, com o feliz encontro que nele me houvera.
Tendo recolhido à presente efetividade seu divino olhar, o Altíssimo encaminhou-se para a Rua São Bento.
Silenciei o Grande Demônio que falava ainda:
— Deixa-me, Grande Demônio, — lhe disse. — Poupa-me de tua loquacidade. Não me turbes o enlevo,
E segui também pela São Bento. No Largo do Rosário dos Pretos, o Altíssimo deteve-se junto a uma banca de abacaxis, que apreciava com singela graça. Adquiri duas rodelas e com Ele partilhei. Aceitou com simplicidade a oferta.
Entusiasmado com a perfeição da suculenta fruta, exclamei:
— Deus seja louvado!
E o Altíssimo, com sorriso grato, aquiesceu:
— Sabe bem!
E despediu-se.
Nessa hora, não me ocorreram questões ou queixas, pareceu-me tão somente que o núcleo do universo subsistia íntegro: intacto, coerente e conciso, na verdade, na beleza e no bem.
Ainda enleado, prossegui rumo ao Largo São Francisco, tendo perdido de vista, porém, o Altíssimo.
Alcançou-me, afoito, o Grande Demônio.
— Filho do homem, — disse —, deves-me uma pedra de gelo quando estiveres no paraíso.
— Veremos, — pensei.
Quando atingi o Largo do Ouvidor, tropecei numa imperfeição da calçada. Mas não caí. Pois um mendigo ali postado, susteve-me na queda, e estreitou-me nos braços, murmurando apenas:
— Bem.
E o alento do mendigo era aprazível e leve.
Tocou então o sino do Convento dos Franciscanos. Dirigi-me à Igreja das Chagas do Seráphico Pai São Francisco. E ali, na silenciosa penumbra da velha Igreja dos Terceiros, revelou-se o segredo do alento que exalara o providente mendigo. Suave, sublime, sutil, oloroso e doce. Abacaxi.
Edmilson Soares dos Anjos
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