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Alegre, na esperança

 

Alegre, na esperança 

Num meio-dia, de belo céu azul, dois senhores reclamavam da vida, à sombra de um arvoredo, no Largo do Ouvidor. Dizia um: 

— Arre, que a vida é uma desgraça! Custa-me crer que toda essa fulgurante parafernália de átomos, estrelas e galáxias, tenha vindo desembocar no miserável conto de horror deste mundo. Que despropósito! Que contradição! 

— Também assim penso — concordou o outro. — De um mundo como este se envergonharia o criador. Já se disse que houve, alguma vez, quem sabe, a possibilidade de que a vida fosse uma coisa boa, mas não foi exatamente essa a possibilidade que vingou. 

Decididamente — tornou o primeiro —, é lapidar a sentença do poeta: “Grande é a vida, e não vale a pena haver vida” (1) 

— Eu, de minha parte, afago a inexistência — comentou o segundo. — Aposso-me dos belos versos de Augusto Frederico Schmidt e deixo-me “pender para a morte”. Deixo-me “estar com a morte ampla e serena, nos olhos e no coração e no corpo e na alma” (2). E no recesso do meu lar, quanta vez, pego-me de olhos fechados, antegozando o calmo prazer da inexistência; e fruo do não-ser, como de um raro perfume, e de um elixir suave, que breve e fatalmente envolverá com doçura todo o meu ser. 

— Tu gozas de um diversório que me foi negado — lamentou o primeiro. — Pois eu afogo-me na existência. Dá-me ganas a vida de lançar-me de todos os viadutos, de suspender-me a todos os postes, atirar-me todas as balas. Não! Não quero mais existir, em lugar algum, sob forma alguma, em hipótese alguma. Chega. Já chega. Basta! 

No entanto, convieram: 

— Enquanto existimos, importa alimentar nossa carcaça. 

E saíram. 

O Grande Demônio, que, sentado na sombreada amurada do Largo, tomava sua fresca, e atento tudo ouvia, observando-me passar, chamou-me: 

— Vês aqueles dois senhores? Conversavam assim e assim, diziam isto e isto. Que pensas tu, filho do homem? 

E eu, que vinha de rezar, com o coração opresso, o Terço da Misericórdia na Igreja das Chagas, com sinceridade reconheci: 

—  Também para mim, o mal e o sofrimento ultrapassam a capacidade de avaliação do pensamento. Toda teodiceia é insuficiente. Mais do que o julgamento das criaturas, o Juízo Final haverá de ressaltar a plena evidência da perfeição divina. Há dois mil anos, porém, a Cruz de Cristo manifesta que o próprio Deus assumiu em Jesus seu Filho todas as dores do mundo, e dirige a bom termo a violenta história da criação, saldando a dor pelo amor. Quanto aos teus dois senhores, lembro o conselho de Virgílio a Dante: Non ragioniam di lor, ma guarda e passa(3). Não devo perder tempo com eles. Ignoram a Providência. Tresvariam. Preferem a extinção ao aperfeiçoamento. Cultivando a amargura da vida, escolhem a grande renúncia — il gran rifiuto (4) —, a recusa da luta pelo bem. Respiram a caligem infernal do desânimo. E assim infeccionados por teu espírito maligno, injuriam o Criador pela deformidade que tu mesmo na criação produzes. Tu, Grande Demônio, que és artífice do mal e do sofrimento, talvez me possas, por contraste, esclarecer, algo sobre Deus. Qual é a tua narrativa? Fala de tua anti-teodiceia.         

Ao contrário do que julgas, filho do homem, o mal e o sofrimento me antecedem, pois a carência, condição original das criaturas, provoca a dor, inflama o desejo — e estabelece o conflito entre os seres. É por deficiência do bem que sucedo. E mais. Ainda que Deus seja luz, como reza a Escritura, habita em claridade inacessível, e se envolve em nuvem escura e espessa treva. Sabes? Deus sempre me pareceu um mistério de contradição. Há nele amor e ódio, bênção e maldição, ira e benevolência, fulgor e horror. Além da felicidade, tem o sofrimento, talvez, seu largo quinhão no ser divino. E na criação buscava Deus, decerto, esvurmar a sânie que no íntimo lhe vesicava. Quando o vi rasgar na matéria, no tempo e no espaço, um cenário em que cuidava — Ele mesmo — de rebolcar-se na humilhação e no auto-aniquilamento, não me pude deter. Lobriguei-lhe a vulnerabilidade assombrosa. E lancei-me a conquistar no tempo uma vitória que mitigasse, ao menos, a derrota que sofri na eternidade. Sabes? Na última hora, insuflei os sacerdotes de seu próprio Templo a apostrofarem o Filho: “Desce da cruz e creremos em ti”. Eu ansiava que Ele o fizesse. Como desejei que o Filho de Deus se desprendesse daquela cruz e escorraçasse seus torturadores — com braço forte e mão estendida! Ai, que eu me manifestaria incontinenti, e, com o mais escarninho dos risos, lhe apontaria: “Eis o teu limite!”. Mas não. Ele submeteu-se à mais abjeta degradação. Ele — o Filho — entregou o Espírito, abandonado do Pai, na morte mais vergonhosa. E como arremate final de loucura amorosa implorou ao Pai perdão para os algozes. Foi assim que, surpreso, perdi. No embate direto. No tempo como na eternidade. A capacidade de autoabjeção de Deus é inimaginável. Não é isto violência? Os violentos se apoderam do Reino do Céu. A violência é inevitável. Contra si ou contra outrem. O Crucificado exorbitou na primeira vertente; a segunda me seduz. A batalha continua. Em toda a terra um ser sobrevive pela morte de outro.  O gemido das vítimas é necessário contraponto de qualquer canto de vitória. A natureza e a história assentam-se no amor de si. Sou o príncipe deste mundo de grandeza, de prazer e poder. Arte e ciência integram o meu reino. Não desvario. Calculo, concateno e prevejo. Anche io sono matematico (5).  Devolvo-te Virgílio e teu Irmão Terceiro Dante, lembrando o episódio do contraditório frade, que, deixando-se enredar pela cavilação de belicoso papa, por conselho fraudulento de conquista que lhe deu, viciado ademais por arrependimento fingido e absolvição prévia, arrebatei, após a morte, das mãos de São Francisco, dizendo por meu serviçal: Forse tu non pensavi ch’io loico fossi!” (6). Atenta, pois. Como sabes, porém, abomino a penitência. Tua Ordem me aborrece. Eu ousei patrocinar o orgulho de viver a vida como ela é, contra a ilusória e humilhante mortificação do Crucificado. Eu ousei. E muitos têm ousado comigo. Quanto a ti ... 

 — Quanto a mim — interrompi —, prossigo no caminho de fé do Crucificado, formando ao lado dos pobres, dos humilhados, das vítimas. O Deus que se aniquila no fugitivo presente é o eterno poder do futuro. O mundo que há de vir pertence às vítimas. O mundo dos violentos e orgulhosos pertence ao passado. Tu, Grande Demônio, tu és a sânie que do universo Deus extirpará. Tu és o passado. 

Fitando-me severamente, perguntou o Grande Demônio: 

— Filho do homem, acaso Deus sacia o teu coração? 

— Na esperança — respondi. 

E levantei-me, deixando-o com uma expressão de incompreensão e desdém 

À frente, na José Bonifácio, os dois senhores que maldiziam da vida fartavam-se com belo almoço. Macarronada, frango assado e bom vinho. Pareceu-me haver nisto alguma incongruência. Tinham eles consciência de que, como creem, se congregavam para seu regalo, naquele momento, bilhões de anos de evolução? E talvez esses pessimistas que anseiam tão desoladamente pela inexistência e pela morte não tivessem tanto direito assim ao desfrute do corpo de uma pobre ave — frágil e tardio rebento, quiçá, de imensos dinossauros.  

Adiante, vi dois cachorrinhos de um mendigo, que pulavam e arreliavam-se numa celebração de pura alacridade, sob o olhar complacente do pobre. E a glória das pequenas alegrias encantou-me. Não sei que dramas ou tragédias a eles adviriam no futuro. Contudo, fulgurava ali, inegavelmente, um clarão — fugidio, mas maravilhoso da Graça.  

Há um sonho de Deus. O sonho de um mundo que integrará na felicidade e na paz todos os seres — que viveram, vivem e viverão. É o radioso mundo do amor de Deus, prefigurado no Éden, cuja concretização foi anunciada pelos grandes profetas de Israel. O leão comerá palha com o boi, o tigre pastará com o cordeiro, e a serpente enrodilhar-se-á no braço da criança pequena, como um gracioso caduceu. 

Certamente, há no mundo contradição, fulgor e horror. E a disposição de tais palavras na mente de uma pessoa denota-lhe o estado da alma. 

Eu, de minha parte, contemplando à luz daquele céu tão azul a inocente satisfação daqueles animaizinhos, prossegui — alegre, na esperança. E pude assim navegar — mais um dia — no fluxo muitas vezes horroroso, sempre contraditório, e, todavia, fulgurante, deste rio, que é a vida. 

Edmilson Soares dos Anjos  

NOTAS 

  1. (1) PESSOA, Fernando Antônio Nogueira (heterônimo Álvaro de Campos), em “Grandes são os desertos ...”    

  1. (2) SCHMIDT, Augusto Frederico, em “Não morrer, mas ser colhido pela morte ...”   

  1. (3) ALIGHIERI, Dante, “A Divina Comédia”, Inferno, Canto III, verso 51. “Não cuidemos deles, olha somente e passa”. 

  1. (4) ALIGHIERI, Dante “A Divina Comédia”, Inferno, Canto III, v. 59-60, Colui chi fece per viltade il gran rifiuto“Aquele que cometeu por vileza a grande renúncia”. Referência talvez a Pôncio Pilatos (lavou as mãos no julgamento de Jesus) ou a Esaú (renunciou a primogenitura por um prato de lentilhas) ou, com mais pertinência aqui, à renúncia de Celestino V (1215 – 1296) ao trono papal, em 1294, após cinco meses de eleição. No calor da hora, em razão também de inimizade política com o favorecido imediato sucessor, Bonifácio VIII (vide Nota 6), Dante condenou severamente o Papa renunciante, que pouco mais tarde, porém, em 1313, teve as razões de sua decisão compreendidas pela Igreja, e veio a ser canonizado pelo Papa Clemente V com o nome de São Pedro Celestino V. 

  1. (5) Expressão italiana: Também eu sou matemático.  

  1. (6) ALIGHIERI, Dante, “A Divina Comédia”, Inferno, Canto XXVII, v. 122/123. “Não pensavas, talvez, que eu fosse lógico”. No episódio citado, o Papa Bonifácio VIII (12351303), pontífice a partir de 1294, ambicionando conquistar a fortaleza de Perestrino, refúgio da grande família Colonna, pede conselho a um astuto, mas, no caso, relutante, frade franciscano, Guido de Montefeltro (1223 – 1298), argumentando que, pelo poder das chaves, poderia absolvê-lo previamente, mediante simples manifestação de arrependimento pela fraude que lhe iria aconselhar. O conselho do frade foi: Lunga promessa con l’attender corto, ou seja, prometer muito e cumprir pouco. Como planejava, Bonifácio VIII prometeu anistia total à família Colonna, que se rendeu de boa-fé, mas uma vez em seu poder, prendeu-os subitamente e arrasou a fortaleza.  

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