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A celebração da Morte

Por Frei Hugo Baggio

Francisco faz da morte uma celebração, uma liturgia. Por ser ela um fato humano, uma realidade “da qual homem algum pode escapar”, ele a convoca para unir-se aos demais elementos vitais do homem: o sol, a lua, a terra com suas flores e frutas, as estrelas e o vento, a água cristalina e cantante.

Não é ela a mensageira de uma fatalidade, embora homem vivente algum dela possa esquivar-se, não é destruidora da tessitura da vida e separadora de corações e dos elementos naturais. Não é uma criatura deformada, repelente, intrusa ou alheia à criação de Deus. Ela é também uma criatura nascida, como todas, da bondade de Deus.

Se para Francisco todas as criaturas são irmãos e irmãs, também a morte é a irmã, aquela que nos toma pela mão e nos conduz por este trecho do caminho, misterioso e sombrio. Misterioso porque não temos dele nenhuma experiência. Tudo o que da morte sabemos é algo exterior a nós, algo que nos chega de fora.

Por isso, não a conscientizamos. E, conseqüentemente, não a incorporamos à nossa história, procurando afastá-la. E como não o podemos fazer biologicamente, fazemo-lo mentalmente: recusamo-nos a pensar nela e dela falar. Rejeitamo-la. Sombrio, porque as civilizações e as culturas encheram este caminho de negrume e sombras assustadoras.

Para Francisco de Assis, esta saudação não é mera exuberância poética, numa hora de bem-estar espiritual, quando nosso ser suporta até os pensamentos aparentemente mais assustadores e desconfortantes. É uma saudação arrancada, no momento de plena consciência da proximidade de sua dissolução, quando o fenômeno morte lhe está próximo, palpável, no tempo e no espaço.

Nem tampouco é um grito nascido de um “cansado da vida”, porque sua cosmovisão fazia-o degustar a vida, e amá-la, em suas múltiplas alegrias. É a conformidade profunda, nascida da fé que acredita numa realidade meta-histórica, atingível apenas através da morte.

Se a morte é irmã, isto significa que entre ela e o homem existe um parentesco, portanto não se trata de algo estranho, algo punitivo, algo fatal, algo inimigo. Também aqui aparece uma dimensão diferente: o desapego foi libertando o homem, até desejar apenas a realização no plano eterno de Deus. Portanto, não fala, aqui, a emoção estética, ainda que o belo exercesse tão profundo fascínio em Francisco, mas é uma expressão teológica de aceitação alegre. Tudo é bem. Tudo é dádiva. Tudo é gratuidade. Por isso ele usa a expressão: bem-vinda!

A terra é “irmã” e sobre ela quer seu corpo estendido para nela passar à realidade eterna, pelas mãos de outra “irmã”, a Morte. Sempre de novo, na visão de Francisco, aparece a fraternização, que vem marcada pela entrega total. Francisco foi o homem “à disposição” de tudo e de todos, como ensina em suas exortações: o frade está submisso à toda criatura. Mormente à disposição de Deus. Daí a entrega final, generosa e alegre, fraterna e pacificada.

Tinha bem claro que o homem não é um ser-para-a-morte, mas um ser-para-a-vida. Por isso, olha com o mesmo olhar límpido e destemido o sol, a lua, as flores, as águas e a morte, porque em todos eles se manifesta o mesmo mistério do ser e palpita a mesma centelha da vida. Sem dúvida, é resultado de uma longa caminhada. Sobretudo, resultado de um relacionamento equilibrado e iluminado com todos os seres, relacionamento feito de ternura e de amor. O que se ama não se teme, pois os dois termos são excludentes. Esta estrofe não foi um aditamento de última hora, mas um complemento necessário, sem o qual o Cântico das Criaturas ficaria mutilado e incompleto.

O Cântico começa com o SOL e termina com a MORTE sem estabelecer um paradoxo, ou antagonismos, mas é uma continuidade natural, uma decorrência lógica. É o encontro da luz solar com a luz da eternidade. É a explosão da luz. Francisco aproximou o Sol e a Morte, a Vida e a Morte, a Beleza e a Morte, a Alegria e a Morte, dentro de sua simplicidade característica, sem fazer violências a si ou aos outros, mas na aceitação plena de quem sabe que somente quando as folhas da flor caem é que a semente tem possibilidade de tornar-se geradora de uma nova primavera.

Ou somente no apodrecer no seio da terra irrompe a vida do grão. Na tradição franciscana, desde Frei Pacífico, o jogral da corte, dos dias de Francisco até um Alceu Amoroso Lima dos nossos dias, vamos encontrar esta fraterna convivência do homem com a morte, depois de ter exorcizado todos os fantasmas e medos e de ter aceito o parentesco com a Irma Morte.

Por isso, entre a série de elementos com os quais tentamos descrever a riqueza do vocábulo franciscanismo, devemos alinhar, com toda a naturalidade, a concepção da MORTE de Francisco como um dos elementos constitutivos do franciscanismo.

Extraído do livro “São Francisco, vida e ideal”, de Frei Hugo Baggio, Vozes.

Fonte: http://www.franciscanos.org.br

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