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O fascínio de São Francisco de Assis: Dançar o amor

Por Frei Vitório Mazzuco Filho

Pretendo fazer três colocações. Sou filho de Francisco de Assis, que não é mais patrimônio apenas dos frades nem só do cristianismo católico. Como prova disso, compartilho com vocês a lembrança de um episódio, ocorrido em 1988, quando eu morava na Itália. Nessa ocasião, junto ao governo italiano estava sendo empossado o novo embaixador da União Soviética. No rápido curso da história, em 1988 ainda existia a União da República Socialista Soviética.

“Após a cerimônia de passagem, no Palácio Quirimale, quando o embaixador apresentou ao governo italiano suas credenciais, foi-lhe oferecido um jantar e, no dia seguinte, uma visita acompanhada à cidade de Roma. O embaixador aceitou o protocolo e visitou a Roma dos césares, a Roma dos papas e a Roma moderna. No terceiro dia foi-lhe oferecida a possibilidade de encontrar-se com o papa João Paulo II. Ele, de forma gentil e diplomática, recusou o convite, dizendo que agradecia, mas que o governo da União Soviética não mantinha relações diplomáticas com o Estado do Vaticano.

Dois dias depois, o jornalista Domenico Del Rio, do jornal La Repubblica, encontrou esse embaixador na cidade de Assis. Junto com a esposa, acompanhado pelo seu segurança, ele caminhava pelas ruelas da cidade. Domenico Del Rio, com sua perspicácia de jornalista, perguntou à queima-roupa ao embaixador russo: “Por que o senhor, estando em Roma, o centro do governo italiano, e morando na Itália, não aceitou visitar o Vaticano, e agora eu o vejo aqui nas ruas de Assis?” O embaixador respondeu com toda a calma: “Se vou a Roma e me encontro com o Papa no Vaticano, visito apenas o mundo cristão católico. Em Assis, visito a humanidade´.”

Francisco, uma porta aberta

O que acontece neste nosso evento é exatamente isto: o encontro de pessoas profundamente unidas no amor que buscam resgatar e recuperar o humano. Essa é a proposta de Francisco, um homem apaixonado: só os apaixonados são criadores e criativos; e só os apaixonados conseguem aproximar-se profundamente da vida na sua totalidade.

Francisco de Assis, atualmente, escapou até do nosso patrimônio franciscano. Ele pertence ao mundo, à vida. Ele é um santo, e não porque foi canonizado, mas porque foi uma grande alma. Ser santo é ser uma grande pessoa – esse é um aspecto muito importante, e sinto-me muito feliz por poder dividi-lo com vocês.

No que se refere a uma terapia das religiões, vivi muito essa experiência, em primeiro lugar pelo fato de ser franciscano. Tenho uma porta de entrada em todo o mundo religioso porque Francisco tem o menor índice de rejeição de toda a história, tem um bilhete de entrada em todas as culturas. Ele entrou tanto no Oriente quanto no Ocidente. Há uma outra história ilustrativa.

“Em 1219, em Damieta, no Egito, confrontavam-se dois grandes exércitos: o muçulmano, comandado pelo sultão Melek-el-Kamel, e o exército cristão, comandado pelo rei de Leão e Castela. Também estava presente um representante do papa, Pelagro Galvan, um prelado da península Ibérica, mais precisamente de Portugal. Eles estavam prontos para um grande combate pela Quinta Cruzada. De um lado o Islã, do outro lado a Cruzada. Ambos motivados por um belo nome: guerra santa.

Francisco, descalço, chegou com mais três companheiros ao campo de batalha. Pediu para ir ao outro lado. O comandante cristão não permitiu. Diante da insistência de Francisco, o comandante acabou concordando, mas como quem diz: “Se ele quer ser um mártir, um suicida, que vá”.

Francisco atravessou as colunas muçulmanas e declarou na frente dos soldados: “Sou um cristão e quero falar com seu comandante, o sultão”.

Os soldados, mesmo reconhecendo que era loucura, encantaram-se com a simplicidade desarmada daquele homem, que não vinha com lança nem escudo; vinha vestido como camponês, com uma coragem tranqüila, apesar de estar do lado adversário. Melek-el-Kamel recebeu-o em sua tenda. E Francisco disse diante dele: “Eu vim falar com você sobre aquilo em que eu acredito: o Evangelho do Deus de Nosso Senhor Jesus Cristo”. E conversou longamente com o sultão, que o escutou atenciosamente – nessa hora ele não se comportou, como escreveram os cronistas do século XII e XIII, como um animal cruel. O sultão era um líder religioso. Era líder religioso de um povo monoteísta, que tem a mesma estrutura teológica do cristianismo, a mesma estrutura teológica do judaísmo e de outras grandes religiões.

O sultão o ouviu e depois o mandou de volta, pedindo: “Reze ao seu Deus para que dê ao meu espírito a sabedoria que for melhor”. E Francisco voltou vivo e tranquilo para o outro lado.

Os laços do coração

Esse significativo episódio ilustra, exatamente, as afirmações de Pierre Weil (escritor e psicólogo). Não houve a violência da guerra: houve o encontro do que a humanidade tem de mais belo: o espírito comum. Sabemos que não são os laços econômicos que unem a humanidade, não são os laços políticos que unem o grupo humano. Há pouco tempo o Brasil celebrou quinhentos anos de colonização. Politicamente, ainda nem nascemos, nem fomos descobertos. São os laços afetivos que unem um grupo humano. Pode haver inveja, ciúme, competição. Apesar disso, o que mais une o grupo humano? O espírito comum. Foi o que Francisco e Melek-el-Kamel fizeram: conversaram sobre o que a humanidade tem de mais fecundo, a partir da interioridade, da profundidade do humano, daquilo que eles crêem.

Porque o ser humano, quando é profundamente humano, encarna o divino. Por isso, todos os sinais dados pelos xeiques, pelos rabinos, pelos sacerdotes, pelos pastores, indicam que haverá solução para os conflitos no Oriente Médio quando eles tiverem coragem de se encontrar, cada um falando do que se passa nas profundezas do seu coração, em vez de brigarem por montanhas em Golan e por lugares estratégicos da faixa de Gaza.

Um outro aspecto que quero lembrar e considero muito importante na proposta da terapia das religiões, foi o que ocorreu em 1989, quando morei por alguns meses em Assis. Assis é mais do que uma cidade; é um estado de espírito. É mais do que um lugar; é um ponto de encontro, é a cidade da paz.

Na leveza da dança

Por morar em lugar tão especial, passei a andar pela cidade em momentos diferentes – de madrugada, à tarde, ao meio-dia, à noite – para sentir todo o seu fascinante mistério. Um dia, levantei-me de madrugada e encontrei uma jovem paquistanesa sozinha, dançando no meio da praça. Era seguidora de um segmento popular da religiosidade muçulmana com forte influência dos dervixes. Ela realizava aquilo que é tradição do povo do interior de São Paulo, de onde venho: a dança de São Gonçalo. Existe uma música do cantor Pena Branca, fiel escudeiro e companheiro do saudoso Xavantinho, que diz: “Os santos querem que eu reze, São Gonçalo quer que eu dance!”

Ela dançava a dança dos dervixes, girando, com as mãos abertas em concha para colher a energia divina e trazê-la à Terra. Nunca me esqueci do nome dela: Merril Parakaratarambill. Perguntei-lhe: “O que você está fazendo?” Surpreendentemente, ela respondeu: “Orando, rezando”. Tornei a perguntar: “Para quem?” Porque ela usava vestes de cor laranja e estava muito bonita, muito serena. E ela disse: “Eu estou rezando para Francisco”. “Por quê?”, perguntei. E ela: “Porque aprendi com os dervixes, aprendi com a minha religião”.

Nós nos apresentamos e seguimos conversando. Ela disse que a religião era como a dança. Que a sua filosofia era esta: para dançarmos, temos de dar um passo. Para darmos o passo, temos de amar profundamente o chão que pisamos, conhecê-lo muito bem e, ao mesmo tempo, não ficar preso a ele ou não haverá nem passo nem dança. Disse, finalmente, que rezava para Francisco porque ele a ensinava a viver a vida um pouco de pernas para o ar, na leveza da dança…

Então, com esses encontros, fui aprendendo com as diversas culturas o que é esse caminho da terapia das religiões.

Encerro, contando mais um fato. Realizei alguns retiros no Monte Alverne, na região da Toscana, onde Francisco vivenciou os estigmas. Lá, encontrei um monge budista. Quando perguntei o seu nome, ele respondeu: “Eu não tenho nome. Chamamos este lugar de encontro. Quero que você me chame Francisco”.

O serafim do amor

As boas fontes franciscanas dizem que, de repente, Deus tocou profundamente Francisco. Ele é um imitador perfeito dos caminhos do Senhor Jesus, e todo aquele que é marcado pelos dedos terríveis desse amor, a ele é impossível não trazer essas marcas em seu corpo. Teologicamente, espiritualmente, dizemos que o anjo, o Serafim alado, veio e marcou o corpo dele com aquelas chagas do Amado. E para sempre o amor tomou forma num corpo. Porque o amor estava no seu coração, e o que está no coração toma conta do corpo, da história, da vida e deixa marcas profundas.

As pessoas que se amam verdadeiramente vão ficando parecidas, não é mesmo? Às vezes observamos que, quanto mais velhos ficam nossos pais, mais se assemelham fisicamente. Naquele retiro eu queria entender o que significavam as chagas de Francisco. O monge me respondeu que, de acordo com sua cultura oriental, todas as nossas energias, o nosso potencial de amor, a nossa fonte do amor, brotam de dentro para fora, e não de fora para dentro. Ele disse que, em sua grande capacidade de amar, Francisco explodiu, seu coração se fez como o Sagrado Coração. O coração de quem ama muito faz assim: Pluf! Salta para fora. E o coração dele abriu-se em chagas, em estigmas. Enraizado naquela terra, naquele chão que ele conhecia e pisava, seus pés ficaram marcados com as chagas do Amor.

A concretude do amor estava nas suas mãos, nos seus pés. É nas extremidades vitais que circulam as energias mais poderosas. E foi aí que o amor transbordou na vida de Francisco. Penso que, quando amamos profundamente, todas as experiências humanas e religiosas nos marcam com as marcas profundas do amor. Quem dá o coração, recebe corações. Isso eu aprendi com Francisco, com o cristianismo e também com o budismo. Eu tenho um mestre taoísta, Chuang Tzu. Eu o leio com a mesma paixão que leio o Evangelho, com a mesma paixão com que leio as fontes franciscanas.

Fonte: http://franciscanos.org.br

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