Até o fim de sua vida, Francisco foi solícito em desejar acima de tudo o Espírito do Senhor. E o Espírito não cessou de conduzi-lo num caminho de renúncia de si sempre mais profunda. Mas este despojamento íntimo, longe de ser um empobrecimento de sua verdadeira personalidade, abria nele um espaço cada vez maior de acolhimento, uma capacidade crescente de comunhão e de fraternidade. Nada retendo para si, ele tornou-se presente a toda criatura. Sua pobreza era sua riqueza, a chave do Reino. No espírito de doçura, Francisco nascia ao mesmo tempo para Deus, para o mundo e para si mesmo.
Não há melhor maneira de compreender esse itinerário do que invocando aquele acontecimento que iluminou seus últimos anos. Mais que um simples episódio maravilhoso na sua vida, o Natal que ele celebrou, três anos antes de sua morte, entre as pessoas simples da montanha, foi uma experiência mística, um novo nascimento. Seu primeiro biógrafo não se enganou. Naquela noite, diz ele, Francisco se fez “menino com o Menino (2Cel, 35). O Espírito do Senhor renovava nele seu “advento de doçura”, no auge do rude inverno da natureza e dos homens.
Estamos no fim do ano de 1223, numa pequena aldeia da montanha que domina o vale de Rieti, no centro da Itália. Esta aldeia se chama Greccio. Para seus habitantes, parece que o ano deve terminar como todos os outros: no frio, no isolamento e na pobreza. A primeira neve começou a cair. E a aldeia tomou seu aspecto invernal.
As pequenas casas se escondem sob sua capa branca. As atividades externas vão se tornando raras. As mulheres fiam a lã dentro de casa. Os homens cortam e racham a lenha… E, quando cai a noite, todos reunidos diante da lareira contemplam em silêncio o fogo que crepita e faz sonhar. Eles esperam. O que esperam? O retorno de dias melhores, a primavera, o sol? Sem dúvida, mas acima de tudo um pouco de calor humano, um pouco de amizade e de alegria. Sonham com um sopro de inocência e de ternura. Mas o que pode trazer-lhes naquele instante a verdadeira felicidade?
Em toda a cristandade, através da liturgia do advento, eleva-se de novo a voz suplicante do profeta, o insistente pedido que vem do fundo dos tempos: “Ah! Javé, oxalá rasgasses os céus e descesses…” (Is 63,19). “Céus, destilai orvalho lá do alto; nuvens, fazei chover o Justo…” (Is 45,8). E eis a resposta lá do alto, radiosa, cheia de esperança: “Consolai-vos, consolai-vos, meu povo, diz o vosso Deus, falai ao coração de Jerusalém
e gritai-lhe que seu tempo de escravidão terminou…” (Is 40,1-2).
Mas, em Greccio, não há ninguém para falar ao coração das pobres. Por mais que as pesadas nuvens se abaixem sobre a montanha, caindo em flocos de neve, o céu não se abre e o Justo não dá sinais de descer.
De manhã, não se vê ninguém vindo sobre a neve intacta. E de noite, muito menos, quando as encostas brancas e desoladas se tingem de cor de malva sob os passos da noite. Ninguém. É a imensa solidão do inverno. E como são longas as noites de inverno na montanha! Ouve-se apenas o gemido e o rachar das árvores sob o peso da neve, ao sopro do vento, no bosque vizinho. E às vezes também o uivar dos lobos. Terra regela-
da, terra ansiosa, à expectativa de um pouco de amor, “quando enfim verás nascer a aurora divina?”
Entretanto, os habitantes desta pequena aldeia não ignoram que por todos os cantos do país se fala muito de um homem chamado Francisco, ou o Pobre de Assis. Sua reputação de santidade é grande. Filho de um rico negociante de tecidos, converteu-se ao Evangelho depois de uma juventude um pouco desvairada e esbanjadora. Renunciou à riqueza, às honras, ao poder, à violência. Fez-se pobre por amor de Cristo e para ser o irmão de todos.
Muitos jovens se juntaram a ele, às dezenas, depois às centenas. Agora são milhares. Vêm de todas as camadas da sociedade, de todas as condições. Francisco ensina-lhes a viver segundo o santo Evangelho, em grande fraternidade entre eles e com todos as pessoas. Revela-lhes o verdadeiro rosto de Deus. Não do Deus dos domínios da Igreja, nem das cruzadas, nem do dinheiro, mas do Deus dos pequenos que vêm a nós com doçura. “Vede a humildade de Deus!” – gostava Francisco de dizer-lhes, mostrando-lhes o exemplo de Cristo humilde e pobre.
Mas eis que naquele mês de dezembro de 1223, às vésperas do Natal, Frei Francisco foi como que tomado por um grande desejo. Revelou este desejo aos seus irmãos: “Quero lembrar o menino que nasceu em Belém, os apertos que passou, como foi posto num presépio, e ver com os próprios olhos como ficou em cima da palha, entre o boi e o burro” (ICel, 84).
Naquele tempo ainda não existiam os presépios de Natal, principalmente os presépios vivos. A idéia era completamente nova e até ingênua. Tinha surgido de repente no coração de Francisco, como uma chama de amor. Era uma idéia extraordinária como só os poetas podem ter, pois são eles que nos fazem voltar aos olhos da infância. E, de súbito, reencontramos os segredos perdidos. Um boi e um burro na penumbra de um estábulo, e o Natal nos é restituído com o realismo de sua ternura.
“Ver” e “fazer ver” o altíssimo Filho de Deus, nascendo ao mundo na humildade e na pobreza de um presépio entre animais, nada era mais importante para o futuro do mundo. Numa sociedade de cunho mercantil, onde o soberano era o dinheiro, o que podia ser mais útil do que fazer brilhar a gratuidade de Deus? Num mundo de clérigos ávidos de honra e poder, o que podia ser mais salutar do que lembrar a humildade de Deus? E num tempo de violências, de cruzadas e de guerras santas, o que podia ser mais urgente, mais necessário do que fazer ver a doçura, a mansidão de Deus?
Não, não se tratava simplesmente de uma idéia tocante. Era toda a vida ardente de Francisco, todo o seu ser, toda a sua busca de Deus que se expressava neste desejo de ver o Menino divino na penúria do presépio.
“Reinventar” o Natal, reencontrar a humanidade de Deus, a ternura de Deus, eis o que Francisco queria para si e para seus irmãos e para o mundo inteiro, imaginando aquele presépio vivo. Ele via longe, muito longe. E a coisa mais simples do mundo. Fora dos caminhos comuns, dos caminhos batidos, ele encontrava a fonte oculta da ternura e da fraternidade.
E quem melhor do que as pessoas simples da montanha poderia compreender e acolher esta mensagem? Como outrora os pastores de Belém, eles serão os primeiros a ouvir a Boa Notícia. Sem hesitar, Francisco decide então fazer o presépio em Greccio.
Apressa-se em confiar seu projeto a seu amigo, o Sr. João Velita, que, apesar de sua alta linhagem e seus cargos importantes, é muito simples e achegado aos irmãos. Francisco tem muita estima por ele e lhe diz: “Se quiseres, é em Greccio que vamos celebrar a festa do Natal este ano. Sim, quero ver o Menino divino, com meus olhos de carne, assim como estava no presépio de Belém, dormindo na palha, entre um boi e um burro… Vai, começa a fazer os preparativos…”(ICel, 84)
O Sr. João, inteiramente de acordo com o projeto de Francisco e feliz pela confiança que o Poverelio depositava nele, apressa-se e vai à humilde aldeia da montanha. Que alegria para os habitantes de Greccio e que orgulho também, quando souberam que Frei Francisco, aquele de quem todo mundo fala com veneração, escolheu sua aldeia para lá celebrar a festa da Natividade que se aproximava! E que surpresa e deslumbramento quando o Sr. João lhes fez saber que Fr. Francisco quer que se prepare um estábulo, exatamente como em Belém, com uma manjedoura provida de palha e com um burro e um boi.
No mesmo instante, toda a aldeia acordou de sua letargia. Todos queriam ajudar o Sr. João a preparar a festa. O lugar escolhido foi uma gruta bem grande, no flanco da montanha. Ali foi instalada uma manjedoura com feno. Foi levado para lá um burro e um boi. Em pouco tempo tudo estava pronto. No dia 24 de dezembro ao anoitecer chegou Frei Francisco com alguns frades.
Havia chegado enfim a noite abençoada em que toda a cristandade celebra o nascimento do Salvador. Os moradores de Greccio e das redondezas acorrem em massa com tochas e lanternas. Nos bosques, ressoam seus cantos. E uma noite extraordinária, toda iluminada com centenas de luzes que enchem a gruta e tudo em redor dela. “Uma noite tão deliciosa para os homens como para os animais”, conta Tomás de Celano (ICel, 85).
Francisco “passa a vigília de pé diante do presépio, comovido e cheio de uma indizível alegria” (ICel, 85). Na verdade, ele experimentou naquela noite um longo momento de êxtase. Com os olhos fixos na manjedoura, parecia ver o Menino Deus deitado no feno, entre os animais. Com toda certeza, seu espírito estava em Belém.
Mas o que via então o Poverelio naquela noite de Natal? Não era apenas uma cena maravilhosa. Ele contemplava o mistério do Natal em sua profundidade. Se ele quis este presépio, não foi para oferecer uma representação simplesmente comovedora. Sua visão ia muito mais longe: via toda a criação com Deus num mistério profundo. Queria tudo que existia, tudo que vivia para este instante único, para esta comunhão com a vida divina no Deus-Menino.
Portanto, a vida divina não devia ser buscada fora das fragilidades da vida humana e de suas raízes obscuras, fora da criação material. No Deus-Menino tudo se encontrava. E o que estava oculto se tomava visível. O sentido do mundo se tornava bem claro. A unidade da criação se revelava. Era uma epifania de luz. Não se podia acolher a vida divina sem respeitar toda vida: a vida humana é claro, mas também as formas de vida mais humildes. Não se podia comungar com a vida divina sem fraternizar com toda vida, com toda criatura. Com toda a criação.
E o caminho desta comunhão e desta fraternidade era a humildade do presépio, aquela humildade original que nos aproxima das mais humildes criaturas, aquela proximidade e doçura que nos fazem reintegrar o vasto círculo da criação. Não era exatamente esta a mensagem dos anjos aos pastores na noite de Natal: “Hoje vos nasceu um Salvador. Este é o sinal pelo qual o reconhecereis: encontrareis um recém-nascido, envolto em panos e deitado num presépio…” A criação inteira, com suas criaturas mais humildes, se havia tomado o “berço divino”. Só podia aproximar-se do Menino, só podia encontrá-lo, quem entrasse no presépio, quem se fizesse a si mesmo bem próximo das criaturas mais humildes.
Nesta noite de Natal, em que Deus mesmo vinha a nós na humildade de um estábulo, era pois preciso manifestar um infinito respeito e uma grande ternura para com toda a vida, por humilde que fosse. Francisco queria que, naquele dia, os pobres e esfomeados fossem saciados pelos ricos, e que se concedesse uma ração maior e mais feno para os bois e burros (2Cel, 200). E não esqueceu os passarinhos: “Se eu pudesse falar com o imperador, pediria que promulgasse esta lei geral: que todos que puderem joguem pelas mas trigo e outros grãos, para que nesse dia tão solene tenham abundância até os passarinhos, e principalmente as irmãs cotovias” (ICel, 200).
Toda esta ternura transbordava do coração de Francisco, enquanto contemplava, extasiado, a manjedoura, como se estivesse de fato em Belém e visse o Menino com seus próprios olhos. Renovou-se então para ele, de uma maneira sensível, o mistério de um Deus nascendo nas profundezas da terra, entre os animais. “Uma das testemunhas – conta Tomás de Celano – viu, deitado na manjedoura, um bebê dormindo que acordou quando o santo chegou perto”.
Não devemos deter-nos neste lado maravilhoso do evento sem ver seu significado profundo. Se quiséssemos traduzir de uma maneira simbólica a experiência espiritual de Francisco naquela noite, sem dúvida nada seria melhor do que relatar este traço maravilhoso. Tomás de Celano não se enganou a este respeito. Ele escreve em sua “Vita Secunda”: “Foi nesse lugar [Greccio] que Francisco recordou pela primeira vez o Natal do Menino de Belém, fazendo-se menino com o Menino”. Assim, para o seu biógrafo, esta celebração externa traduzia uma transformação interna: “Fazendo-se menino com o Menino, factus cum Puero puer” (ICel, 86).
Este presépio vivo, no fundo de uma gruta onde acorda um lindo bebê quando Francisco se aproxima, simboliza o nascimento oculto do Deus-Menino nas profundezas da alma, num homem plenamente reconciliado com sua arqueologia. O presépio é a expressão
sensível de uma aproximação interna de Deus por caminhos de humildade e de reconciliação: por caminhos de encarnação.
Atribuem-se ao teólogo Bultmann estas palavras: “Eu quero Cristo sem o presépio”. Querer Cristo sem o presépio é querê-lo sem suas humildes inserções naturais, sem sua matriz cósmica. Numa tal perspectiva idealista, o evento da salvação nada mais tem a fazer com a Terra-Mãe, com tudo que nos liga ao cosmos e à vida; ele se desenrola à primeira vista na pura interioridade, acima de qualquer condição carnal; não nos atinge em nossas raízes vitais e psíquicas. Numa palavra, não assume o destino total do ser humano, deste ser “que lança raízes na natureza animal e, ultrapassando o que é simplesmente humano, se eleva até à divindade” (Jung). A criação material e animal é deixada de lado. Ela não é atingida pelo evento da salvação. Portanto não há reconciliação do homem com suas forças obscuras, nem transfiguração da agressividade, nem da libido. Cristo não desceu às nossas profundezas. A paz do Natal ficou pendurada nas estrelas.
Completamente diferente é o caminho de Francisco. Ele encontra o Menino-Deus na humildade do presépio, fraternizando com nossos irmãos os animais e com toda a vida. Ele o encontra lá onde estão as nossas raízes. Deus, para nascer no homem, tem necessidade do homem todo e primeiramente de suas raízes obscuras, vitais e cósmicas. É com isto que ele conta: “Vede a humildade de Deus”, dizia Francisco aos seus irmãos.
Depois desta longa vigília de oração e de canto na gruta transformada em estábulo, a missa do Natal foi celebrada na manjedoura como altar. Francisco, que tinha vestido a dalmática em sua qualidade de diácono, cantou o Evangelho da Natividade. Com sua voz “vibrante e doce, clara e sonora”, proclamou a Boa-Nova: “Não temais, pois eu vos anuncio uma grande alegria que será para todo o povo: hoje vos nasceu um Salvador…” (Lc 2,10-11).
Depois deste anúncio, Francisco dirigiu-se ao povo, convidando todos a regozijar-se com o evento. Não era um sermão que ele fazia, era sua própria vibração interior que lhes transmitia. Em palavras bem simples, evocou a pequena cidade de Belém e o nascimento do Menino-Deus na pobreza do presépio. Ouvindo-o, tinha-se verdadeiramente a impressão de que naquela noite o céu havia perdido todo o seu orgulho e se havia tomado próximo e fraternal. O Deus de majestade se havia feito nosso irmão em Maria sua Mãe.
Pode-se encontrar um eco da homilia de Francisco na oração que ele compôs para as vésperas de Natal, em seu Oficio:
Naquele dia Deus nosso Senhor concedeu a sua graça
e de noite ressoou o seu louvor.
Este é o dia que o Senhor fez,
alegres exultemos por ele.
Pois foi-nos dado um Menino amável e santíssimo,
nascido por nós à beira do caminho
e deitado numa manjedoura,
porque não havia lugar na estalagem.
Glória a Deus nas alturas
e paz na terra aos homens de boa vontade.
Alegrem-se os céus, rejubile a terra,
ressoe o mar com tudo o que contém,
rejubilem-se os campos e o que neles existe!…
“Paz na terra!” A mesma paz que Francisco foi anunciar aos cruzados, depois ao sultão, no Oriente Próximo, foi nesta pequena aldeia da montanha que ela floresceu naquela noite de Natal. Não era necessário correr para o país de Jesus para encontrá-la: Greccio se havia tomado uma nova Belém. O Menino-Deus nasce em toda parte onde há seres humanos bastante humildes para reconhecer-se irmãos uns dos outros e de toda criatura.
Trecho do livro “O Sol Nasce em Assis”, de Éloi Leclerc, Vozes, 2000
Éloi Leclerc
Fonte: http://www.franciscanos.org.br
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